Na base da montanha espera-se um milagre.
Saio de manhã cedo para o meu mistério e vejo agitação nas ruas.
Rostos ansiosos, gestos bruscos, gritos nas vozes.
A sombra é ainda grande e a cidade ilumina-se à mão.
Escolho o trilho mais seco para ouvir no chão os meus pés.
As linhas paralelas encontram-se no infinito.
E uma mentira pode sempre encobrir-se com outra.
A falta de esperança não me entristece.
Nenhum mundo é deste reino.
O movimento muscular aquece o coração e o sonho.
Cada passo presume outro e bastam-se todos com essa certeza.
O cansaço, hoje, ainda está longe.
Vem apenas quando o objectivo já está à vista e já é inútil.
Como os gritos da partida, como os olhares ansiosos, como a esperança.
O tempo acompanha-me calado.
Sinto-o ao meu lado, monótono e irrepetível.
Faz de cada passo uma festa mas a timidez esconde-lhe a exuberância.
Entre mim e ele nem uma palavra.
Porque também o silêncio vem connosco.
É assim que se repetem as minhas manhãs húmidas ou secas.
A própria paisagem deixa-nos passar como se tivéssemos vontade.
Mas a vontade não veio por não saber comportar-se.
Vamos sós, portanto.
Eu, o tempo, o silêncio e a minha carga.
À tarde voltaremos com o cansaço atravessado na garganta.
A sensação perfeita de uma missão não cumprida.
O corpo arrastado na sua segura insegurança.
A roupa colada ao ardor da pele.
Nas ruas, os rostos ansiosos, bruscos, em gritos.
Assustados mas contentes pelo milagre de estarem vivos.
Todos os dias cumpro o meu plano.
O ritmo e a rotina confundem-se.
À distância, no leito do descanso, ocorre-me mesmo uma certa melodia.
Como se numa dada dimensão, às coisas sobrasse significado.
Na distância que se desenvolve repetida sob os meus pés, nos caminhos que vão sendo sempre o mesmo de outros dias, vejo, pela previsão própria de não esperar, o ciclo finito da importância.
No alto de cada dia há o cansaço adequado a eliminar promessas.
Tudo o que aprendi esqueço pelas mesmas razões.
E logo a seguir há o recomeçar do silêncio.
O recado de cada hora é a expressão do seu limite.
Sei, por querer saber, a curta vida das ilusões.
Aprendi, por ignorar, que se ousasse seguir, seguiria sempre.
Vi, por me ocultar, lugares mais além do horizonte.
Perdi, por desejar, uma boa ocasião de ser sentido.
Ouvi, pelo silêncio, o cântico orvalhado da servidão.
Fugi, emparedado, do medo que todos os dias me alimentou.
Todos os dias cumpro o meu plano.
Mesmo que o meu plano são seja meu.
Mesmo que não tenha feito nenhum plano de algum dia cumprir planos.
Há uma cadência própria nos passos que marcham a favor do seu destino.
Latente, na invisibilidade há uma presença rigorosa.
A harmonia é tão aparente como o desgosto de ficar de fora.
E lá fora, no erguer subtil da tempestade, queremos ainda que sejam sinais.
Cumpro o meu ciclo de verdades.
Arrisco apenas o ligeiro ardor dos olhos.
E à noite, enquanto se fazem fogueiras para acender desejos, ocupo o meu corpo a iluminar os limites que não quer.