A gravidade atrai os corpos

Sábado, 8 de Dezembro de 2007
Conto

Cumprem-se todos os dias novas intenções.

No passo certo com que tento deter o cansaço há sempre uma variante de tempo e de espaço.

A repetição nunca se repete da mesma maneira.

E o gesto que se espera vem sempre antes ou depois da cadência.

Nenhuma medida se satisfaz consigo mesma, sem se deter na comparação.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.

No que estava escrito, tudo era claro menos o número.

De todas as coisas se podia falar sem receio nem omissão.

As palavras seguiam-se umas às outras apenas pelo prazer de dizer.

Depois de cada frase havia sempre outra frase que a negava.

Mas o número, não.


As contas que faço ao volume do meu medo nunca dão resto zero.

A altura a que chega a minha voz é uma oitava do que era.

O preço de cada instante de prazer tende para infinito.

A área da superfície do meu sorriso, tende para zero.


Mas isto é nada, com o que se passa à minha volta.

O que interessa são os números grandes e os grandes números.

A competição é pelo volume de sangue a escorrer pelas valas.

Pela quantidade de gente que passa fome.

E pelos ritmos de produção de espingardas.


Também interessam os números do euro-milhões.

Os números da bolsa, do défice, do desemprego, da inflação.

Interessam os golos, os pontos, os espectadores e as receitas da bola.

Os custos de aeroportos, o preço do petróleo e a temperatura da Terra.

Interessam muito os números de circo da estatística das sondagens.

O ordenado mínimo, a esperança de vida e o número de crianças.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.

O que estava escrito era uma forma de passar o tempo e olhar para ele com ironia.

Liquidavam-se em palavras as dívidas de ignorância.

Passava-se para o momento seguinte numa pirueta de gestos e sons.

E estava na mão a ligação física à terra de que éramos matéria consciente.


Mas o número chegou para nos contar histórias trágicas.

Para nos comparar uns com os outros sem nos ver.

Para nos desenraizar com raízes quadradas.

Para nos somar, subtraindo, e nos multiplicar, dividindo.


Sísifo


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Domingo, 16 de Setembro de 2007
Vácuo

Aceito que nos passos que descrevem um percurso há uma equação universal,

Nos pequenos pormenores de todos os dias sou capaz de ver teorias de tudo,

E nas dobras coloridas dos caminhos encontro referência a leis fundamentais.

Aceito que esse possa ser o campo de uma razoável crença.


Leio, na escuridão preenchida de estrelas, obscuros romances inacabados.

Sinto, no esforço muscular da subida, as marcas da escultura do tempo.

Percebo, na violência cinzenta do vento, a harmonia frágil da consciência.

Ouço, próximo da margem do rio eufórico, a atracção universal dos corpos.

Sonho, quando a força já não obedece, a equivalência entre a dor e a luz.


Acima das nuvens há um horizonte maior,

A distância sobre a verdade transforma todas as coisas em pequenos nadas,

O relativamente difícil torna-se relativamente fácil,

E os dons que suponho anteriores a cada gesto, tornam-se súbito acaso.


Descer de novo à terra e à sua vã esperança é um suave tormento.

Cada ciclo aproxima-me de distâncias cada vez maiores.

A mancha cinzenta do real revela-se em pormenores escurecidos,

E das paredes húmidas desce o aroma acre do sofrimento,

Enquanto se testam, sob os rochedos, formas dementes de destruição.


Não era isso que tínhamos pensado no início.

Queríamos saber apenas como esgotar nos poros a curiosidade;

Vasculhar a profundidade e o exagero, com prazer e delírio.


Queríamos encontrar uma razão que soubesse muitas razões.

Queríamos tomar connosco o tempo como companheiro de viagem;

Sacudir, na gargalhada ocasional, a certeza biológica do efémero.


Mas há, no discurso ambíguo da inteligência, lugares abandonados ao seu destino,

E o opaco medo de não ser, parece resistir a todas as tentativas de clarificar a natureza da matéria.


Sísifo (sobre a bomba de vácuo)


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Segunda-feira, 23 de Abril de 2007
Sedimento

Houve um tempo em que a luz parecia ser o lugar definitivo.

Todos os caminhos se lhe dirigiam e não havia dúvidas.

Cada passo que se dava tinha-a por projecto e o que ainda não era, haveria de ser.

Pela luz passavam todos os sinais e toda a esperança.

Era impossível admitir, sem luz, mais do que o inferno.


No meu rotineiro caminhar para o alto estava implícita a luz.

Lá de cima, do topo, da distância, emanava a luz e a clareza.

Era assim para mim e para todos, e não havia outro caminho.


No prosaico rolar da gravidade adivinhava-se o refluxo da escuridão.

Descia, e o deslizar inclinado do destino era o assombro.

Em baixo, no fundo da montanha, a escassa luminosidade era disputada com a morte.


Na pena de subir e descer, os deuses tinham engendrado o maior dos sofrimentos:

Conhecer a luz e ter de a abandonar pela escuridão.


Outras penas há em que a pena se reduz por não saber que se pode viver sem pena.

Ou, a pena só é pena quando se lhe conhece a ausência.

Reconhece-se, por isso, que a ignorância é uma sorte.


Mas não é por isso que os poderosos manipulam a luz.

Querem apenas o equilíbrio rudimentar que evita a violência da revolta.

Luz quanto baste para algum desejo.

Luz tão pouca quanto a necessidade.


Depois foi a catástrofe do ultravioleta.


A luz já não é luminosa e o topo da montanha já não salva.

Os passos que se dão para subir não se distinguem do descer.

Na profundidade das masmorras vêem-se os pormenores de um rosto com rigor atómico.

E o que se sabe tem o mesmo valor do que não se conhece.


Os homens sentam-se às escuras para combinar os assaltos e as orações.

Rebuscam no lixo, com as mãos nuas, e alegram-se da sua precaridade.

Soltam uma gargalhada rugosa e o solavanco bestial fá-los felizes.

Despedaçam com os dentes os mistérios, os segredos e as frustrações.

E dizem, sempre que podem, que é assim que a vida é.


Passo por onde posso com um sorriso, para que não me sigam.


Sísifo


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Terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007
Lei

São os fantasmas que governam.

Vivem na escuridão, na sua nocturna providência, e mandam.

Regulam os gestos e os olhares, encaminham os desejos e dissimulam.


São os fantasmas que governam.

Dirigem os passos de maneira subtil.

Sorriem sobre o modo ausente de ser.

Empurram com elegância cada pensamento para o abismo.


Não deixam nada ao acaso, a não ser a aparência de que é o acaso que comanda.

E é o acaso que comanda, logo no nível acima.

Mas os fantasmas ficam contentes por sentirem que no nível em que se movem, e fazem mover toda a gente, são eles que determinam.

Ficam contentes no seu papel de senhores da vontade.


É curto o tempo da existência.

E inconsequente também.

Mais quente ou mais frio, para o planeta tanto faz.

Um homem e uma galinha apenas diferem no grau de destruição.

E na dimensão dos dejectos.

Para o planeta.


Sobre o planeta mandam os fantasmas.

Tiraram o poder aos deuses que primeiro inventaram para isso.

E condenam tudo o que lhes tenta sair debaixo da sola aveludada.

Marcam com um ferro em brasa o tresloucado.

Dão como exemplo o súbdito menor.


Estranha linhagem esta que não partilha o sangue mas o tilintar das moedas.

A montanha onde subo e em que cumpro a minha pena não tem ainda tributo.

Mas virá o dia em que, para o meu bem de condenado, será necessário que a minha pele se entregue para leilão.


São os fantasmas que governam.

Encostados uns aos outros, de liturgia em punho, defendem-me de mim.

Traçam do destino as linhas principais e ajudam-me a identificar o ouro e a lama.

Aquecem os meus neurónios para que se alegrem com a felicidade dos fantasmas.


Digo-lhes que a minha pena é antiga e sobreviveu a multidões como eles.

Depois deles virão outros.

E eu permanecerei aqui, feliz por não ter razão.


Sísifo


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