Muitas vezes é melhor o silêncio.
Uma banal ausência presente.
Ou o contrário.
Jogo de palavras que se não dizem para não acordar dormências ou sonhos.
Passa-se sobre o ranger inquietante do soalho a ouvir fantasmas.
Acontece sempre tudo no silêncio.
Portas que batem, ferrolhos que correm, chuva cansada.
No silêncio ouve-se o impossível.
Há segredos a fugirem no murmúrio do ar.
Um brisa improvável e passos a descer a escada.
Respiração.
Um relógio.
É comum que se use o silêncio para confrontar o tempo.
Na música acorda o sentido da nota seguinte.
Na batalha antecipa a violência da morte.
No amor afina a atenção para o odor dos corpos.
No pensamento abre uma brecha para a divagação.
O silêncio é uma indisciplina.
Carrega o peso ingrato do desafio.
Muito mais do que o grito irado.
Muito mais do que o insulto ou a promessa.
Mais ainda que a ignorância militante.
De vez em quando é necessário um tempo de silêncio.
Uma pausa, um salto, uma falta, um soluço, uma distracção.
Do intervalo regular das rotinas sai um momento de inquietude.
Nas bermas do caminho o reflexo de passos.
No céu os riscos brancos.
No topo da montanha ouve-se, em certos dias, o poder do silêncio.
Rasga-se sobre a mente com uma violência insuportável.
Pesa mais que a tortura de um castigo injusto.
E mesmo assim é necessário um tempo de silêncio.
Como a tortura, como o medo, como a ingratidão.
Só mais tarde saberemos, no ajuste de contas, dos benefícios do silêncio.
À distância, o cimo da montanha não se distingue do topo da montanha.
Isso poderia ser uma razão suficiente para não me preocupar em estar num lugar ou noutro.
E foi assim que senti sempre o meu lugar, estivesse no topo ou na base do gigante megalítico.
Entre o alto e o baixo da rigorosa construção dos elementos, não seria eu a escolher ou dizer o melhor.
Para a natureza indiferente, uma e outra coisa têm um lugar que não permite hierarquias ou ordens.
E eu faço parte, queira ou não, dessa indiferença da natureza.
À distância, qualquer que ela seja, a diferença que se encontra entre as diferenças, é mínima.
À medida que a distância aumenta, as diferenças tendem rapidamente para zero.
E seria fácil rever as diferenças e pensar que as diferenças mínimas não chegam a ser diferenças.
Quando a montanha parece, assim como hoje, íngreme e cheia de impossibilidades, olhar para ela a grande distância, ainda que apenas pelo olhar da imaginação, tem esse efeito de colocar as diferenças numa medida que possa ser medida com o curto discernimento que acolho.
Vejo ao longe a altura imensa que transponho e o peso imenso que transporto, e tudo parece menor e mais leve, deixando ao passo o seu ritmo mais fácil e veloz.
Do olhar distante recolho ensinamentos dúbios que auxiliam por momentos a relatividade fortuita dos sentidos e das dores.
À distância, pode olhar-se para o outro lado da terra e não ver senão grãos de areia, e, semeadas nela, cores que encantam e disfarçam as abissais diferenças que para sempre ficam ocultas.
Mas é essa mesma indiferença que me arrasta para o largo horizonte.
Lá em cima vêem-se as mesmas estrelas, à mesma distância e com as mesmas cores.
Mas há mais estrelas e o céu é mais imponente.
Lá em cima a diferença é maior... e a indiferença também.
À distância este ocaso que me preenche é invisível excepto para mim.
Vejo os astros a moverem-se coordenados como se tivessem uma intenção e me ignorassem.
Penso que é o meu o olhar que lhes dá existência e com isso tento sobreviver.
A minha função de observador do céu, dá sentido ao mesmo céu - retira-o da inutilidade.
No topo da montanha falo com os astros que não me escutam.
Tento escutar os astros e ouço silêncio.
O que quer que eu diga esgota-se na curta distância da minha voz.
Passa-se qualquer coisa com a natureza que não se liga a nada nem a ninguém.
Deve ser isso que nos humanos é errado.
Pressupor que a distância pode apagar todos os ecos e todas as diferenças.
Gerar nas mentes o esquecimento.
Diluir com rapidez os sentidos e as formas.
Mas no fim persistir em algum lugar um vazio que só a natureza inorgânica é capaz de suportar.
Neva no topo da montanha.
O frio e a sua mancha branca regressaram.
Os ciclos, desanimados com a rotina, preparam surpresas e tempestades.
Os caminhos tornam-se indiscerníveis e os passos marcam-se pesados.
Transporto um mundo às costas e com ele a minha vida.
Não é muito nem pouco, apenas o essencial.
Restos de coisas que foram restos de outras coisas.
Como o nosso corpo é o resto dos outros corpos que o fizeram.
Mesmo que eu não saiba ou não queira saber, houve alguém antes de mim e haverá alguém depois.
Os passos que ficam na neve serão tão efémeros como o meu medo.
Lá no topo, as horas são mais longas e o frio mais frio.
Agora que a temperatura é baixa ninguém lá vai, e a solidão é sólida.
Em nenhum caminho me cruzo com outra palavra.
Apenas o meu monólogo de louco que não quer ser.
Quando se fala é contra o silêncio.
É o único que perece perante a voz.
E o que digo, e digo porque penso, é mais do que penso e digo.
Há também a voz do vento.
Voz que diz o que sabe, como se soubesse.
E é o vento a coisa mais humana que encontro nos lugares altos onde me empurro.
Para todas as coisas é necessário estar preparado.
Mas há tanta variedade de coisas, que acontece sempre uma surpresa.
E depois, na surpresa que nos surpreende, não há nada de novo...
Esse não é o meu caminho.
Não estou à espera de surpresas.
Estou como se estivesse preparado para todas as surpresas.
Jogo com elas e esqueço todas as suspeitas.
O que vier a seguir é ainda uma daquelas coisas que podem ser.
E o que pode ser, o que está dentro do horizonte das possibilidades, faz parte do saco grande de surpresas que na infância soubemos estar à nossa espera.
Não sou eu que espero as surpresas no topo da montanha.
São elas que estão pacientemente à minha espera.