"Eu tinha uma fazenda em África...". É esta a primeira frase de uma narrativa que este filme (África Minha) conta com a inteligência de saber mostrar que a primeira frase de uma história é sempre e irrecuperavelmente última de outra coisa.
(Eduardo Prado Coelho)
As coisas acabam sempre antes de nos apercebermos.
Na continuidade dos gestos não damos conta da discreta evaporação dos objectos.
O risco sistemático da inércia prolonga os movimentos que já se esgotaram na fronteira.
E, à frente de um rosto imóvel, as imagens perdem o sentido e a direcção.
O nadador dá as últimas braçadas já sobre a margem segura.
Agora imóvel, o cavalo ainda rasga o espaço em potência.
À janela, o passageiro vê na paisagem baça um esforço de persuasão.
No quadro, pintado a cores nuas, é descrito um futuro.
E, no chão do pátio, ainda goteja a tempestade de ontem.
Todo o movimento me recomenda um destino.
E dele chovem palavras de incitamento à desordem.
A quadrícula encarcera o desenho alinhado de certezas.
Parecem elas querer dizer outra coisa que já não sabem por esquecimento.
Não há meio termo.
Mesmo que seja lá que se passe todo o tempo.
Entre o regular bater de um coração e a fria redundância da neve.
Espaço vazio, mesmo de faltas e de lacunas.
Passa-se o tempo na ausência.
A corroer esperanças, pedaços de lenha e lágrimas.
Peças soltas de uma cabeça quebrada por ambições inverosímeis
Em dois curtos passos o salto: do universal à singularidade.
Em todos os lugares são deixados vestígios de sangue.
Marcas que se organizam para deslocar a razão.
Entre a desistência e a revolta.
Elas próprias ávidas de vestígios de sangue.
Tal como antes, matar para não morrer.
As coisas começam sempre antes de nos apercebermos.
Seja por acaso ou por destino, o resultado é o mesmo.
Nada tem que ser como eu tinha pensado.
Os frutos caem da árvore sem chegarem a perguntar porquê.
Circulam os afectos da mesma forma que a água pelos canais.
E nas sombras mais obscuras não se escondem monstros nem gemidos.
Aquilo que conta quando se fazem as contas sem fazer de conta, é o que se sente quando se sente.
Sobre o abismo que se avista do topo da montanha paira sempre a tonalidade húmida de um certo infinito.
O relativo abandono gera no coração uma vaga sensação de perda.
Como se nos confins onde custa a chegar fosse necessário um ar rarefeito.
Cada momento de azul que amanhece sobre o horizonte é uma dose suplementar de incerteza.
Vê-se, ao mesmo tempo que se ouve a monotonia dos passos a trilhar a areia, o rasto sistemático da repetição e a atracção sublime do espaço.
Não saber acaba por ser o destino mais natural.
Oculta sobre a névoa está a ambição e a prática corrente de comparar os sonhos.
Todos concorrem para afastar o pensamento do seu caminho.
Nem sempre chego ao topo com a mesma ansiedade.
Dias há que parecem claros e luminosos.
Aí, os sons são mais soltos e as verdades menos necessárias.
Cumprem-se os rituais e retoma-se o canto na dobra mais simples do mapa.
Um dia, quando, por acaso, se reunirem as condições especiais, vou pensar em todas as consequências de subir e descer esta montanha, sem que nada de sagrado me obrigue, a não ser esta genética que ocasionalmente conformou as moléculas emprestadas ao meu corpo.