A gravidade atrai os corpos
Segunda-feira, 24 de Março de 2008
Forma

"Eu tinha uma fazenda em África...". É esta a primeira frase de uma narrativa que este filme (África Minha) conta com a inteligência de saber mostrar que a primeira frase de uma história é sempre e irrecuperavelmente última de outra coisa.

(Eduardo Prado Coelho)


 



As coisas acabam sempre antes de nos apercebermos.

Na continuidade dos gestos não damos conta da discreta evaporação dos objectos.

O risco sistemático da inércia prolonga os movimentos que já se esgotaram na fronteira.

E, à frente de um rosto imóvel, as imagens perdem o sentido e a direcção.


O nadador dá as últimas braçadas já sobre a margem segura.

Agora imóvel, o cavalo ainda rasga o espaço em potência.

À janela, o passageiro vê na paisagem baça um esforço de persuasão.

No quadro, pintado a cores nuas, é descrito um futuro.

E, no chão do pátio, ainda goteja a tempestade de ontem.


Todo o movimento me recomenda um destino.

E dele chovem palavras de incitamento à desordem.

A quadrícula encarcera o desenho alinhado de certezas.

Parecem elas querer dizer outra coisa que já não sabem por esquecimento.


Não há meio termo.

Mesmo que seja lá que se passe todo o tempo.

Entre o regular bater de um coração e a fria redundância da neve.

Espaço vazio, mesmo de faltas e de lacunas.


Passa-se o tempo na ausência.

A corroer esperanças, pedaços de lenha e lágrimas.

Peças soltas de uma cabeça quebrada por ambições inverosímeis

Em dois curtos passos o salto: do universal à singularidade.


Em todos os lugares são deixados vestígios de sangue.

Marcas que se organizam para deslocar a razão.

Entre a desistência e a revolta.

Elas próprias ávidas de vestígios de sangue.

Tal como antes, matar para não morrer.


As coisas começam sempre antes de nos apercebermos.

Seja por acaso ou por destino, o resultado é o mesmo.


Sísifo


tags:

publicado por prólogo às 23:08
link do post | comentar | favorito

Segunda-feira, 3 de Março de 2008
Rasto

Cada vez mais as palavras se escrevem de silêncio.

A história não deixa de ser a minha história e é contada com tempo como se ainda houvesse tempo.

Pouco importa o pouco que sabemos sobre o que é o saber.

Apenas contam os passos que se contam enquanto se dobram as esquinas que escondem os lados adjacentes.

Passos que dou à procura da palavra que ainda falta para preencher o enigma.

Jogo que se faz ao entardecer com os restos mortais de um dia mais.


Cada vez mais as palavras se dizem por gestos.

Foge de nós o momento que estávamos à espera.

Foge de mim o lume que antes tinha iluminado os dedos pálidos.

Mas não são bem fugas.

São aproximações a outros lados que já têm consigo a sombra e a matéria condensada.

Supõe-se, segundo os antigos, haver um lugar onde as vozes aproximam o belo.

E, a ser verdade, vale a pena o voo sobre lugares de tais promessas.


Cada vez mais as palavras se escondem.

Os lugares chamam-se agora por números inteiros.

Calculam-se com luzes nervosas a cintilar de precisão.

Cada momento é um excesso insuportável à espera do seguinte.

Não sou capaz de descer essa rua inclinada.

A palidez do projecto dá-me náuseas, e não encontro no caminho a alternativa à distância.

Pergunto às sombras que tempo falta para o próximo comboio.

O tal que nos vai levar para o lugar anunciado.

Dizem-me silêncio.


Cada vez mais as palavras morrem.

A figura ausente acende em brasa o último cigarro.

Uma palavra pode ser bela mesmo que não seja o que diz.

A ausência tem peso e simetria, baila à beira do abismo com vontade de partir.

Não é com gestos bruscos que empurro o tempo.

Cada segundo no seu lugar.

Pela última vez. Irrepetível.

Para onde vai o tempo que por aqui passa?

Que pressa o leva daqui tão rudemente?

Que sábio encanto o move com tanta decisão?


Cada vez mais as palavras se esgotam de tédio.

Descuidou-se a certeza de conhecer o futuro.

Pairou sobre o medo a astúcia banal da alegria.

Caiu a águia no chão da rua iluminada.

Às vezes basta uma letra para que tudo seja diferente.

Ou a pontuação que não pontua.

Um simples som digitado com lenta ternura e o tempo cala-se de espanto.

Vago bater de asas de um viajante eterno que passa pela arquitectura da matéria sem deixar rasto.

Menos a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro.


Sísifo


tags:

publicado por prólogo às 22:53
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Março 2008
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
25
26
27
28
29

30
31


posts recentes

Forma

Rasto

Eco

Conto

Adiamento

Vácuo

Longe

Surpresas

Ácido

Cansaço

arquivos

Março 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Agosto 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

tags

todas as tags

blogs SAPO
subscrever feeds