Neva no topo da montanha.
O frio e a sua mancha branca regressaram.
Os ciclos, desanimados com a rotina, preparam surpresas e tempestades.
Os caminhos tornam-se indiscerníveis e os passos marcam-se pesados.
Transporto um mundo às costas e com ele a minha vida.
Não é muito nem pouco, apenas o essencial.
Restos de coisas que foram restos de outras coisas.
Como o nosso corpo é o resto dos outros corpos que o fizeram.
Mesmo que eu não saiba ou não queira saber, houve alguém antes de mim e haverá alguém depois.
Os passos que ficam na neve serão tão efémeros como o meu medo.
Lá no topo, as horas são mais longas e o frio mais frio.
Agora que a temperatura é baixa ninguém lá vai, e a solidão é sólida.
Em nenhum caminho me cruzo com outra palavra.
Apenas o meu monólogo de louco que não quer ser.
Quando se fala é contra o silêncio.
É o único que perece perante a voz.
E o que digo, e digo porque penso, é mais do que penso e digo.
Há também a voz do vento.
Voz que diz o que sabe, como se soubesse.
E é o vento a coisa mais humana que encontro nos lugares altos onde me empurro.
Para todas as coisas é necessário estar preparado.
Mas há tanta variedade de coisas, que acontece sempre uma surpresa.
E depois, na surpresa que nos surpreende, não há nada de novo...
Esse não é o meu caminho.
Não estou à espera de surpresas.
Estou como se estivesse preparado para todas as surpresas.
Jogo com elas e esqueço todas as suspeitas.
O que vier a seguir é ainda uma daquelas coisas que podem ser.
E o que pode ser, o que está dentro do horizonte das possibilidades, faz parte do saco grande de surpresas que na infância soubemos estar à nossa espera.
Não sou eu que espero as surpresas no topo da montanha.
São elas que estão pacientemente à minha espera.
Nada tem que ser como eu tinha pensado.
Os frutos caem da árvore sem chegarem a perguntar porquê.
Circulam os afectos da mesma forma que a água pelos canais.
E nas sombras mais obscuras não se escondem monstros nem gemidos.
Aquilo que conta quando se fazem as contas sem fazer de conta, é o que se sente quando se sente.
Sobre o abismo que se avista do topo da montanha paira sempre a tonalidade húmida de um certo infinito.
O relativo abandono gera no coração uma vaga sensação de perda.
Como se nos confins onde custa a chegar fosse necessário um ar rarefeito.
Cada momento de azul que amanhece sobre o horizonte é uma dose suplementar de incerteza.
Vê-se, ao mesmo tempo que se ouve a monotonia dos passos a trilhar a areia, o rasto sistemático da repetição e a atracção sublime do espaço.
Não saber acaba por ser o destino mais natural.
Oculta sobre a névoa está a ambição e a prática corrente de comparar os sonhos.
Todos concorrem para afastar o pensamento do seu caminho.
Nem sempre chego ao topo com a mesma ansiedade.
Dias há que parecem claros e luminosos.
Aí, os sons são mais soltos e as verdades menos necessárias.
Cumprem-se os rituais e retoma-se o canto na dobra mais simples do mapa.
Um dia, quando, por acaso, se reunirem as condições especiais, vou pensar em todas as consequências de subir e descer esta montanha, sem que nada de sagrado me obrigue, a não ser esta genética que ocasionalmente conformou as moléculas emprestadas ao meu corpo.