Houve um tempo em que a luz parecia ser o lugar definitivo.
Todos os caminhos se lhe dirigiam e não havia dúvidas.
Cada passo que se dava tinha-a por projecto e o que ainda não era, haveria de ser.
Pela luz passavam todos os sinais e toda a esperança.
Era impossível admitir, sem luz, mais do que o inferno.
No meu rotineiro caminhar para o alto estava implícita a luz.
Lá de cima, do topo, da distância, emanava a luz e a clareza.
Era assim para mim e para todos, e não havia outro caminho.
No prosaico rolar da gravidade adivinhava-se o refluxo da escuridão.
Descia, e o deslizar inclinado do destino era o assombro.
Em baixo, no fundo da montanha, a escassa luminosidade era disputada com a morte.
Na pena de subir e descer, os deuses tinham engendrado o maior dos sofrimentos:
Conhecer a luz e ter de a abandonar pela escuridão.
Outras penas há em que a pena se reduz por não saber que se pode viver sem pena.
Ou, a pena só é pena quando se lhe conhece a ausência.
Reconhece-se, por isso, que a ignorância é uma sorte.
Mas não é por isso que os poderosos manipulam a luz.
Querem apenas o equilíbrio rudimentar que evita a violência da revolta.
Luz quanto baste para algum desejo.
Luz tão pouca quanto a necessidade.
Depois foi a catástrofe do ultravioleta.
A luz já não é luminosa e o topo da montanha já não salva.
Os passos que se dão para subir não se distinguem do descer.
Na profundidade das masmorras vêem-se os pormenores de um rosto com rigor atómico.
E o que se sabe tem o mesmo valor do que não se conhece.
Os homens sentam-se às escuras para combinar os assaltos e as orações.
Rebuscam no lixo, com as mãos nuas, e alegram-se da sua precaridade.
Soltam uma gargalhada rugosa e o solavanco bestial fá-los felizes.
Despedaçam com os dentes os mistérios, os segredos e as frustrações.
E dizem, sempre que podem, que é assim que a vida é.
Passo por onde posso com um sorriso, para que não me sigam.
Talvez não valha a pena perceber.
Joga-se com o sentido e no fim cada um tem a sua boa razão.
Cada acto acaba a valer por si, e ao mesmo tempo por aquilo que não é.
O mérito está apenas em não perder; em não sentir nunca a derrota.
Cada viagem ao lugar central é um regresso.
Há ritmos inscritos nos materiais a contrariar as grandes opções.
Sobre os sonhos ainda se dirá serem eles a verdade.
E logo a seguir a morte ou a desistência.
A Lua, por exemplo, faz o seu ciclo como se não soubesse do tempo.
No horizonte há estrelas que se mostram nuas eternas.
Sob o manto pacífico da Terra movem-se massas imponentes de fogo.
E nas noites mais dóceis é possível olhar riscos de luz.
E os finos bordados do medo no escuro.
O nada que faço aqui é tão sério como a nuvem que se forma um instante.
Cada vez que o Sol nasce ainda, é uma primeira vez para sempre.
As rosas deixam cair as pétalas para depois.
Vazias.
Desço outra vez este caminho disfarçado de condenado.
O que sou, seja o que for, é tão pouco como o disfarce que uso.
As botas gastas do atrito do tempo são ao mesmo tempo que o meu rosto.
As gotas de água que transpiro já as bebi muitas vezes.
E o alimento que vai crescendo agreste na beira do caminho já de novo foi meu.
E eu já perdi da minha posse tudo o que outra e outra vez retive,
Nada é só uma vez para sempre.
Mas não é assim que se sentem as coisas.
O que se sente, o que ocorre no intervalo curto em que somos, é uma vontade desfocada de querer o que não é e fugir a todo o custo do que se mostra.
Talvez não valha a pena perceber.
Quando o vento já perdeu a força que tinha de mandar.
Sísifo