Gosto de ser esta coisa pouca que não tem anseios de universo.
Parar por aqui, pelas curvas apertadas dos lugares sombrios, sem lamentos nem lágrimas, sem poder nem ambição.
Subir todas as manhãs a ladeira que leva ao tal lugar que nada tem.
Pousar o corpo à noite na escura tonalidade da enxerga sem que o sonho perturbe a mansidão do silêncio.
Gosto de pairar sobre a premonição das águas que dizem canções insignificantes.
Voltar alegre da minha dívida, sem temor de me perder em somas que não conheço.
Saltar imune sobre as chamas que dançam lúbricas à espera de gestos perdidos.
Gosto de vogar pela planície, cansado e ébrio, retendo o sono para sentir ao máximo a beleza.
Partir para cada viagem com o lastro apenas das imposições legais.
Sem perfumes nem medos, sem agasalhos nem vícios, sem preces nem sapatos.
Sentar-me à beira do caminho com o sol a pique e o suor a escorrer a pele.
Agarrar o rosto fresco da água que desce densa sobre a carne e a lava.
Gosto de ler nas folhas secas os pormenores do destino e jogar as cartas escritas pelo amor.
Vigiar de longe o prazer verdadeiro das crianças a brincar.
Procurar palavras que saibam dizer bem das coisas que ainda não existem.
Sentir o vento massajar o cabelo e arrefecer as preocupações e os sentimentos.
Gosto de ter este vazio das mãos como riqueza maior e usá-lo para me saciar.
Seguir ligeiro pelo caminho do meu acaso sem temer à frente o falcão da morte.
Entreter-me com o som dos passos a soletrarem ritmos sobre a calçada.
Olhar a noite mais escura à procura de sinais que sobrem da ofuscação do dia.
Gosto de acompanhar a pacífica resistência dos anos com gestos suaves e prudente entendimento.
Virar as páginas do caderno que comecei a escrever na infância.
Beber o café de aroma puro que traz de África o sabor e a excitação.
Antecipar o desejo e o gosto daqueles que conheço porque amo e que amo porque conheço.
Gosto de, no auge da subida, quando o esforço já ultrapassou o seu próprio limite, soltar, contra vontade, a esfera empedernida, e acompanhar a catástrofe da queda com o grito rouco que solta, enfim, do interior do corpo o milagre do reconhecimento.
Há quem pense que a montanha a que subo, perdendo-me na dor e na sombra, é o conhecimento.
Seria então a minha vida uma metáfora, um jogo de palavras.
E daí se concluía que a esfera que teimosamente faço rolar montanha acima, nada mais seria que o esforço necessário a todo o saber.
Nada disso é verdade a não ser o jogo de palavras.
Tal como as espécies que não se adaptam, extinguiram-se os deuses há muito tempo.
Inadaptados também, postos à margem, numa memória apenas evocada pelo poder, os deuses saíram de cena abandonando o mundo à sua sorte.
O tribunal que me condenou já não existe.
Caducou juntamente com a esperança e a justiça.
Finou-se por falta de condições de aplicabilidade.
Quem fiscalizaria a dor do condenado?
Quem daria ordem de liberdade?
Quem premiaria os bem-comportados?
Quem enterraria os mortos?
Foram-se embora os deuses com a sua autoridade e levaram também a razão do medo e a força da obediência.
Levaram consigo as trevas mais evidentes e o cheiro inebriante do Olimpo.
Saíram daqui mergulhados no próprio tédio, incapazes de saber o que fazer com tanta força.
Abandonaram os deuses os erros que criaram e esconderam a cara de vergonha.
Eu fiquei o erro que sou.
Cumpro a minha pena como sempre fiz.
Subo à montanha empurrando a esfera e lá em cima deixo-a rolar testando a constância da gravidade.
A minha condenação foi para sempre.
Não é preciso esperar que venha o carcereiro e me solte.
Nada é mais solitário que a eternidade.