No lado de lá da montanha já começou a chuva.
Sei, por que me chegou o cheiro novo da vida a sair da toca.
Também ouvi os trovões e as frases curtas das aves.
Senti até na pele o efeito de uma certa razão profunda para desejar.
Provas demais de que esteja já a chover no lado de lá da montanha.
Os passos pesam mais na lama.
Não é ainda mas sei que em breve o percurso será mais doloroso.
É assim e assim será.
Como as manhãs e o vento e a sombra e o efeito anímico de um corpo belo - belo pelo efeito anímico que provoca num corpo.
Mecânica do cosmos e mecânica dos sentidos.
Química da mão que dobra sobre si e ampara o corpo no bordão.
Poderia ter-me ocorrido não aceitar.
Poderia ter-me ocorrido procurar outro destino, outra perturbação.
Poderia ter-me negado a permanecer no meu caminho, na minha solicitude.
Sei que não o pensei porque não quis.
Tive ao meu alcance outra forma de liberdade e outra forma de dor.
Era apenas uma ligeira mudança na bifurcação dos caminhos e teria ido para outro céu.
Sei que não o pensei porque não quis.
Seria agradável dizer agora, com a forma arrogante que mereço, que escolhi o melhor.
Seria agradável porque talvez o meu rosto perdesse por momentos a sisudez da indiferença.
E eu sei, por ter aprendido na infância, que os músculos chocalham soltos quando nos rimos.
E também sei que poderia dizer tudo o que quisesse, fosse ou não verdade, fosse ou não aquilo que sentia.
Acontece, e os factos são os meus guias, que estar aqui, nesta sequência solitária de passos, é apenas resultado da forma arredondada como a chuva cai, hoje do outro lado da montanha, amanhã aqui sobre mim, gelada e desconfortável, à espera de de novo ser alguém numa figura viva qualquer que a beba.
Sísifo
Do alto da montanha sobe um fumo negro.
Hoje é, outra vez, dia de iniciar uma caminhada esgotante.
O sol queima e as sombras recuam secas para longe dos trilhos.
Há fumo negro no topo da montanha.
Os mais justos, os que consomem calmamente a vida a muita distância da fronteira, cantam a virulência trágica das paixões.
Recolheram, em tempos, dados sobre a reabilitação do sagrado e prosperam agora entre orações e pecados ligeiros.
É muita a distância que os separa do fumo no topo da montanha.
Na primeira curva do trilho que me conduz à soberba vista, discutem, peões, a natureza negra do fumo no topo da montanha.
Sinais de fumo.
Erupção cinzenta.
Cachimbo da paz.
Não é credível a fama da ausência.
O que não está pereceu, com ou sem razão, sabendo ou não que perecia à espera do significado.
São inúmeras as interpretações e sobre elas se farão outras que terão a sua ocasião de sucesso.
Há em todos os caminhos obstáculos deixados ao acaso pelo destino.
Não chega a ser um pesadelo porque é apenas um sonho.
O desejo de classificar nasce na junção das primeiras células.
Só depois vêm os outros desejos.
Cada passo é mais difícil que o anterior por ser o que se sente agora, por ser o que não precisa da memória.
O que passou, passou, desceu de vez às entranhas da satisfação e esqueceu os passos em falso.
De nada serve a história das coisas quando a atenção se fixa no cansaço absurdo das pernas.
Hoje é, outra vez, dia de encaminhar o corpo para a sua vontade.
De o deixar ultrapassar a dor para consentir o desejo.
Hoje é, outra vez, dia de reconhecer no calor abúlico do sol a mancha escura que vive e mata.
Partem tranquilas as nuvens.
Sabem de longe a cor que acompanha a fuga.
Reconhecem à distância o apetite diagonal da fé.
E vão-se as nuvens do horizonte, ficando apenas o negro ameaçador do fumo.
Não há enganos possíveis no percurso.
Por todo o lado estão indicados os limites.
Sabemos sempre onde estão definidas as fronteiras.
Cada olhar esclarece à exaustão a cor perfeita para cada identidade.
Na profundidade do trajecto nada é deixado ao acaso.
Hoje é, outra vez, dia de chamar rotina ao desagrado e disponibilidade à dor.
Encaminham-se os sentidos e ignoram-se os impulsos.
Pede-se a cada segundo que passe indiferente à angústia e à necessidade.
O sol é quente de terror.
Desvia-se com frequência o trilho da intenção primeira.
Às vezes vou por aí, como se soubesse.
Às vezes imagino que podia não ser assim.
Quem sabe, um dia...
Sísifo