A gravidade atrai os corpos
Sexta-feira, 21 de Julho de 2006
Alcance

Sente-se que a terra treme.
O alcance de uma bomba é sempre curto.
Um grande passo para um homem, pequeno passo para a humanidade.
Não se sente em lugar nenhum a não ser na curva logo a seguir ao lugar da morte.

Ontem soube que ninguém queria a salvação para o seu vizinho.
É agradável viver num mundo assim em que não se chega a sentir o pior.
Há uma margem bem definida e fica-se do lado de cá para o que der e vier.

Em todo o caso, seja qual for a insolência do tempo, o desvio de grandeza é sempre ínfimo.
Ninguém tem alcance na voz para se fazer ouvir para além da sua resguardada solidão.
A arte cénica do gesto hiperbólico também só é vista nas primeiras filas da plateia.
O aroma da violência não vai além do arame farpado que define o redondo da vala comum.
E o sabor da morte, quando chega, é intransmissível.

Poderia ser diferente?

Ontem fiquei a saber que os gestos humanos são encenados por especialistas.
Também ontem, numa tarde de emoções avulsas, se revelou o aspecto recorrente do medo e a evolução maciça do desespero.

Não há apelos a fazer, nem instruções ritmadas, nem gestos purificadores.
Não há soluções empacotadas, nem fórmulas químicas de correcção.
Não há modelos aperfeiçoados, nem justiça, nem sementes mágicas.
Não há pistas, nem praias, nem desembarques, nem almoços, nem gritos.
Não há processos arquivados, nem poder tolerante, nem saber gratuito.

O que há, é esquecimento.
Pura evanescência na memória, ou rumores perdidos e renovados.
O que há, é ver outra vez a mesma cena, já com outra matéria nos olhos e outra luz no horizonte.
E esquecimento.
E medo de perder, de ganhar, de sentir, de tremer no momento da perturbação.

Aconteça o que acontecer é irrelevante.
O sofrimento é uma coisa pessoal, reprimível, funesta e indeterminada.
Nada ocorre sobre a inocência bruta do rio que segue o seu desleixo próprio de milhares de anos de história sem pesadelos nem consequências.

Poderá não existir substantiva diferença entre o encaminhar rotineiro das vidas e a flutuação caótica das ondas a remar indolentes com a maré, razoáveis no seu mister e transparentes no horror que lançam sobre as outras formas de existência.


Sísifo



publicado por prólogo às 23:46
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Terça-feira, 4 de Julho de 2006
Esfera

É verdade que no cimo da montanha há uma miragem.

De lá, do cansaço da subida e do ar rarefeito, vê-se o universo como se fosse logo ali.

De lá, da pele áspera do frio e da secura, ouve-se a terra com se fosse paz.

De lá, da febre e do prazer da conquista, sente-se o corpo como se voasse.


Há na repetição dos gestos, louváveis secreções de sonhos.

Movimento balanceado do ritmo de ir sabendo do regresso e de voltar para não permanecer.

Sobem as certezas na flecha do tempo e da ambição.

Crescem como vulcões os sentidos da posse, da vontade, da insistência...


Todos os dias o mar entra alegre pela nesga apertada da rocha.

Baba-se de prazer com a espuma de estar a cumprir uma missão.

O mar sabe.

O mar sabe há muito tempo qual é a sua ordem e o seu destino.

Faz o que tem a fazer e não pede desculpa a ninguém.

Segue a sua vocação de saber ir e saber voltar.

Segue a sua intenção de ser livre porque imprevisível e insensato.


Quando, no cimo da montanha, as estrelas ficam ali próximas, à mão de semear, dispostas em formas clássicas e dispostas a serenar o espírito, penso que sou o mar, a desfrutar da praia onde entrei à força do músculo das marés.


Quando, lá no alto, o som ausente estremece nos meus pulmões limpos da cegueira e da fome, e o ténue risco que separa as nações se mostra imponderável, vejo-me a inundar os corais e a animar as cores infundadas das anémonas.


Quando, no topo, na sólida rigidez das pernas, gastas de ingratas caminhadas e quedas e regressos e medos e sonhos e impossibilidades, desejo-me sentido e calmo, sorvendo a lentidão solene de um balouçar prudente, encantador de sereias, de tempo e de servidão.


Todos os dias o sentido iluminado volta.

Pelas ruas crescem, à porta das casas, as ilusões.

Não é necessário esperar mais tempo para perceber que será sempre assim.


Mas não importa.

À porta de cada casa há uma razão própria e única para colher as flores.

Cada degrau passa por cima de toda a Terra.

Por muito alto que suba é sempre a mesma a distância ao centro.


Sísifo



publicado por prólogo às 19:57
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