Em toda a tua vida cometeste apenas um erro.
Em toda a tua vida houve apenas uma vez em que escolheste o caminho errado.
Um desvio apenas.
Um lapso.
Não sei quando nem o quê.
Não estava lá, no momento, a lucidez nem a vontade.
Ocorreu apenas o passo dado, no lado distinto do que devia ser.
Foi um pouco ao lado nunca saberei de quê.
Fizeste o teu momento, encaminhaste os passos para o plano que sobrava.
Viraste à esquerda quando era para virar à direita.
Subiste num momento em que era imperioso descer.
Nada é claro no desenvolver dos instantes e dos mistérios.
Nunca se propõe que o destino seja uma coisa pré-definida.
Mas está lá sempre o caminho projectado por um desenhador louco no início dos tempos.
O teu erro poderá ter sido um sonho.
Um pensamento que por desatenção vagueou fora do propósito.
Estiveste, por momentos, ausente da consciência histórica e trocou-se o efeito físico pelo metafísico.
Lado a lado seguem o destino e a consciência, alinhados no pudor e na insistência.
Há uma certa clareza no desejo, mas há também as regras e a estabilidade do sol.
Voam sempre os edifícios distantes no real e na sensibilidade.
Caminhaste sempre na tua recusa da imobilidade.
O erro foi apenas um, definitivo por isso, inevitável porque submisso aos tremores da consciência.
Não há ciclos.
Tudo emerge novo de novo.
Pálidas flores que agora brotam são diferentes das pálidas flores dos anos passados.
E a chuva - estas gotas inocentes de vida - é a que agora cai e que agora molha.
Tiveste o teu tempo de fraqueza.
Falhaste a ocasião em que o teu olhar estava ocupado em vão.
É mesmo assim.
É sempre um erro que nos traz a liberdade...
Sísifo
Sobre o topo da colina há hoje
um nevoeiro denso.
Nada se vê para além do
alcance dos passos e o retorno da minha voz chega abafado pela
cegueira da humidade.
Temo por isso que o meu trabalho hoje
me não deixe chegar à satisfação.
São muitos os truques que o
tempo inventa para tirar dos meus gestos o sorriso.
Ardiloso é o tempo.
Dá-se, para que nos lembremos
das coisas antigas, mas espera que a ignorância chegue sempre
primeiro.
Compra cada elemento da nossa memória
a um preço de saldo e devolve apenas o que lhe convém
para os seus inconfessáveis desejos.
Paciente é o tempo.
Está antes de nós e fica
depois de nós e esquece-se de nós e continua sempre.
Não se pode confiar nele.
Em nenhum tempo.
Seja ele qual for há-de tentar
que sejamos, mais tarde ou mais cedo pura ilusão.
Hoje fez-se um nevoeiro denso como que
a tentar que eu desistisse.
É penosa a subida e o esforço
duplica para vencer a dureza do caminho.
Partilho as gotas de água do meu
rosto com as gotas do tempo, vítima e algoz lado a lado como
velhos e inseparáveis amigos.
Mesmo no topo desta montanha, quase no
topo, portanto, pomos o barco a velejar; por tão pouco.
Gosto de percursos teoricamente
perfeitos.
É aí, nessa linearidade
que o pensamento encontra atravessando os caminhos mais complexos,
que sinto o valer a pena do existir.
Pega-se em símbolos, em
artefactos rigorosamente inúteis, que não se comem, nem
se bebem, nem nos dão continuidade, e constrói-se uma
forma, ainda ausência, mas metamorfose sentida do nada.
Aos artifícios do tempo respondo
com um sabor de sonho.
Haverá sempre muitos caminhos
possíveis.
Todos bons e todos maus.
Todos inúteis e todos perfeitos.
Todos rigorosamente certos e todos
caoticamente errados.
No fim, seja qual for, estará
sempre uma frase a dar-me alento, um pássaro a sobrevoar
impossíveis, uma nota de música a acomodar contrastes,
um fio de aranha a sustentar-me, uma estranha ordem a desafiar-me, um
incompreensível infinito...
Sei que nada disto vale a pena, mas sei
que é isto que vale a pena.
No meio do nevoeiro, que eu olho em vez
de ver, está o objectivo.
Não o vejo e por isso não
sei se está lá, mas avanço, avanço
sempre, fazendo do avanço o meu desejo.
Sigo cauteloso, temente à
surpresa de um instante que quebre a magia de querer.
À frente, lá à
frente, está o tal lugar que presumo meu destino.
Mas o meu destino só o saberei
depois.
E...
Sísifo