É sempre legítimo dizer
coisas horríveis acerca da humidade.
Faz-se o mesmo com as coisas altas e
com as coisas baixas.
E com isso, sendo isso as palavras e os
sons que se não percebem, arrumam-se de uma vez só
várias questões fracturantes.
Mas eu não desdenho a humidade.
Nenhuma humidade.
Lá em cima, no lugar onde penso
sempre ser o topo, é também o lugar onde as nuvens se
formam.
Às vezes, com tempo, com bom
tempo, fico no meio delas, oscilando entre o horror de não ter
horizonte e o prazer de ser vivo.
Nesses dias sinto-me a água que
como eu, desce a montanha a correr, e formo-me em gotas que tombam
brincando com a gravidade dos factos.
Ser água é não ser
mágoa, é escorrer pelos caminhos feitos de tempo e
escolher sem escolher o lugar preferido para evaporar de novo.
Às vezes sou vapor.
E como vapor subo, ascendo ao topo, ao
lugar onde as pressões já não me comprimem.
É como vapor que me vêem
os olhos dos que olham para os textos e não lêem.
E é isso que é bom no
vapor: ser a metamorfose de uma coisa que é o nada e nada é.
Como vapor sou sonho; como líquido
sou intenção; como sólido sou morte.
Voar, andar ou morrer.
Um dia serei gelo.
Pedra partida e seca, morta, despenhada
no caminho, veneno reversível.
E isso, isso de ser gelo morte e tudo,
deixarei para depois, para quando já me tiver esquecido.
Também podia ser assim: sonhar,
lembrar, esquecer.
Entretanto, entre tanto sonho,
entretenho os dias mudando de estado, viagem à volta dos
lugares e de volta aos lugares em que cristalizo sombras.
Desço rápido a montanha
que me abriga; recupero o tempo dando-lhe outra forma; ascendo às
alturas por força de um vento poderoso; e não me canso,
não me canso, não me canso...
Sísifo
(relativamente a uma bela fotografia do Revelações Avulsas)
Houve um tempo em que eu quis voar.
Estava aberta a porta e eu saí, como se fosse ali fora apenas para respirar outro ar e saber novidades.
Não sei bem se é assim que se começa a querer voar mas foi assim que aconteceu comigo.
Do lado de lá da porta - e a mim interessa-me aquilo que está do lado de lá da porta - sentia que o espaço era mais largo, fosse isso o que fosse.
Porque eu não sabia.
O que eu sabia era apenas o resultado de uma operação de elementar inteligência: não há abismos; nada acaba abruptamente; a seguir há sempre mais e mais.
Dir-se-ia que o meu horror ao vácuo era pura descrença.
A primeira palavra que terei dito, fora do expectável da criança que aprende a falar, foi 'aquilo'.
Mas isso foi muito antes de ter essa impressão de que poderia voar.
Muito antes de pensar que havia um lado de lá desejável e promissor.
Mas gosto de pensar - pura vaidade - que aquilo a que o meu 'aquilo' se referia, era já a incógnita de um lugar que ainda não sabia.
Era já o espaço onde tudo existe em potência.
Os gatos raramente se preocupam com o que vêem.
As ansiedades que os tomam são sempre estranhezas e ausências - o que se não vê mas está presente na forma oculta ou disfarçada.
O meu voo, naquela ocasião de porta aberta, naquele desejo de um lugar de estranheza e sobreposição, nascia inocente, do querer olhar para trás e conseguir ver a totalidade.
Voar seria então, estar à altura do impensável, coabitar com o infinito, ver o invisível.
À tarde o avô levava-me ao jardim e os pombos vinham comer as migalhas das bolachas aos meus pés, antes de ousarem bicar com perícia a palma da minha mão.
Estranhava que podendo eles voar, podendo eles seguir um rumo de excesso para a distância em que se vê um largo horizonte, preferissem ficar ali comigo, na magreza de uma migalha.
Embora não compreendesse agradava-me aquela dedicação.
Num momento, infância, é-se o centro, a importância, o filho, o neto, a causa.
Só mais tarde dei conta de as novidades durarem apenas um instante.
Só muito mais tarde percebi que o mundo é uma metáfora de si próprio.
Só ainda mais tarde acreditei que acabamos sempre trocando voos por migalhas.
Sísifo