A gravidade atrai os corpos
Quarta-feira, 27 de Abril de 2005
Bruma
Não é dramático que não se saiba.
É assim que a maior parte das vezes as coisas se passam e ninguém fica pior por isso.
Ou, se fica, é assim um ficar mal sem razão.
Uma vontade de piorar que não tem a ver com saber ou não saber.

Saber alguma coisa já seria uma espécie de extravagância.
Um protesto contra a realidade.
E, como todos os protestos, um grito em vão.
Basta saber, ainda que com reservas, que não é necessário preocuparmo-nos com o que não se sabe.

Talvez seja um jogo de palavras.
É de certeza um jogo de palavras.
Isto se não levarmos o conceito de certeza muito a sério.
E o jogo é mesmo para levar sempre a brincar.
Um jogo, como sabemos, e isto de sabermos é apenas uma maneira de falar, é sempre um jogo perigoso.

Houve um tempo, dizem, em que as certezas eram o pão nosso de cada dia.
Uma época estranha em que se tomavam as aparências por verdades, como hoje, mas em que se levava isso a sério.
Um tempo da história em que as coisas apareciam e eram vistas como possíveis.

Depois passou.
Da mesma maneira que passa uma dor de cabeça.
E voltámos convictamente à estranheza perante as distinções entre certo e errado.
Voltámos a olhar para os objectos como manifestações da vulgar urgência do espaço em travestir-se em mil e uma formas diferenciadas.
Que se lixe o espaço!

Não é trágico que não se saiba.
Nada é trágico desde que haja suficiente distância entre o fenómeno e a consciência.
Que se lixe a consciência!

amm


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Segunda-feira, 25 de Abril de 2005
Sagrado
Talvez não seja justo chamar-Me Deus.
Apenas, talvez, por uma questão de pormenor.
Nada de grave. Nada de importante. Portanto.
Mas a justiça, como se sabe, é descontínua. É discreta.

Por uma questão de justiça passarei então a não Me chamar Deus.
Ou por uma questão de pormenor.
Também isso é um pormenor.
O que é importante é esta importância que neste momento rejeito.

Hoje, ao sentir-me vagamente perdido, procurei nos livros uma solução para o problema de me sentir vagamente perdido quando procuro nos livros uma solução.
Foi desagradável perceber que estava à procura de uma coisa que muito provavelmente não existia.

Entre as várias soluções de recurso, que se têm sempre como segunda oportunidade para quando as primeiras não funcionam, estava o regresso ao princípio.
Senti-Me tentado. E depois percebi que não era livre para Me sentir tentado.
Algo na minha tautologia divina não funcionava.

Pormenores. Coisas pequenas que vão encravando a realidade.
Foi por eles que mudei de nome. Agora já não sou.

amm


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Domingo, 24 de Abril de 2005
Obstáculos
Queria que já não houvesse desejo.
Exactamente! Que já não houvesse desejo.
Seja isso o que for: moléculas, estrelas ou fome. Tanto faz.

Isso porque eu queria sentir que me determinava.
Obviamente! Sentir que me determinava.
Seja isso o que for: escolha, impulso ou condição. Tanto faz.

Porque só me interessa lidar com a realidade.
Evidentemente! Lidar com a realidade.
Seja isso o que for: átomos, ideias ou sonhos. Tanto faz.

É lá que procuro a lucidez.
Como toda a gente sabe! A lucidez.
Seja isso o que for: saber, distância ou tempo. Tanto faz.

Porque quero mais que tudo a liberdade.
Como toda a gente quer! A liberdade.
Seja isso o que for: infinito, totalidade ou prazer. Tanto faz.

Tudo isto porque queria ser feliz.
Nitidamente! Queria ser feliz.
Seja isso o que for: saciedade, sono ou poder. Tanto faz.

Já que em qualquer caso nada tem importância.
É claro! Nada tem importância.
Seja o nada o que for: sol, lua ou buraco negro. Tanto faz.

amm


publicado por prólogo às 17:37
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Realidade
Há fumo no horizonte.
Nuvens de fumo, como se costuma dizer.
O fumo sinal faz pensar que por detrás do fumo há fogo.
E por isso sendo o fumo o fim de qualquer coisa é também e principalmente o princípio de outra.
Ainda que seja o princípio de um pensamento sobre a origem.

Temos duas hipóteses: ir à procura da origem do fumo ou deduzi-la.
Em ambos os casos serão apenas hipóteses e nunca ficaremos a saber.

Se vamos ao horizonte onde está o fumo chegaremos tarde.
Tarde de mais, como se costuma dizer.
Se ficamos aqui a fazer considerações nada saberemos.
Ir ou ficar tem resultados idênticos.

Habituei-me, entretanto, a olhar para o fumo e a considerar que ele está lá para eu ver e poder imaginar o que o provocou.
Ou que ele está lá para eu imaginar que ele não está.
Ou ainda que ele está lá apenas porque me parece que está ou porque me apetece que esteja.

Num certo sentido sou um incendiário.
Sou capaz de colocar fumo no horizonte.
E faço isso como um mágico, a uma distância assinalável, sem testemunhas.
Impunemente, como se costuma dizer.

amm


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Sexta-feira, 22 de Abril de 2005
Demonstração

Nem sempre apetece ouvir a verdade.
Quase sempre porque a verdade é incómoda.
Mas nem sempre é por isso.
Porque a verdade é sempre incómoda.
E se fosse por ser incómoda quereríamos sempre não ouvir a verdade.

Quase nunca apetece ouvir a verdade.
E quando ouvimos a verdade nunca a aceitamos.
Embora nunca saibamos se é verdade o que ouvimos.
Porque a verdade nunca é total.
E uma verdade que não é total nunca nos convence.

Sempre que ouço uma verdade protejo-me.
Faço sempre como se não a ouvisse.
Olho sempre para o ar, fico distraído a olhar para o céu.
Porque uma verdade parece sempre verdade.
E sempre tive desgosto das aparências.

Não, nunca perco tempo com uma verdade.
Afasto-me como se nunca me tivesse interessado.
E nunca me interessou, de facto, a verdade.
Porque a verdade nunca interessa a ninguém.
E nunca fez parte de nada importante na história.

Sempre que vejo uma aparência de verdade recuo.
Nunca fico à espera que me atinja.
Confio sempre que será a última vez.
E nunca mais sofrerei por tal coisa.

amm


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Sexta-feira, 15 de Abril de 2005
Diagnóstico
No lado de lá da montanha, quando a noite já ameaça com as primeiras sombras, é costume encontrar, sempre que alguém procura, um silêncio com voz humana.

Terá havido, num passado que podemos imaginar, longas erupções de lava que não tinham intenção alguma.

Foi nesse puro acaso, deslocado de um sonho que também não tinha intenção, que se formou, em remotas circunstâncias, um halo inesperado que deslocou o centro do mundo para o exterior da realidade.

Os instantes que vieram a seguir foram já discutidos por inúmeros sábios. Sobre isso foi dito tudo o que era possível. Fizeram-se todas as combinações entre o desejável e o apenas improvável.

Mas não conseguimos sair deste lugar. As fugas que alguns ousaram, arriscando com isso todas as vidas, não tiveram mais efeito que um retorno surpreendido.

Não há nenhuma razão para descrer de um outro percurso qualquer que tenha destino.

Somos animais de vícios e não sabemos nunca onde estamos depois de dar uns passos fora do livro. E os olhos são incapazes de ver para além das formas da memória.

Um dia haverá em que, deslocados a fim de ouvir o silêncio com voz humana, sem intenção, inesperadamente, encontraremos o outro lado do desejo.

amm


publicado por prólogo às 22:12
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Segunda-feira, 11 de Abril de 2005
Continuidade
Há entre os núcleos dos átomos espaço bastante para construir uma catedral. Mas aí a atmosfera é agreste e os ventos electrónicos. Por isso, pelas condições ambientais adversas, enche-se o universo de vazios e de terras de ninguém. Por isso também, as distâncias tornam-se enormes quando queremos chegar mais perto daqueles que nos esperam.

Não há muito a fazer. Os lugares inabitáveis reproduzem-se e tomam a forma de reservas de identidade. O espaço só é espaço porque é vazio. O espaço é o espaço que há entre as coisas. E entra cada duas coisas que eu queira que sejam coisas haverá sempre um espaço que imperativo as separa. E nunca podemos falar das coisas sem pensar que é muito mais o que se diria se falássemos abertamente do espaço que há entre elas.

Mesmo assim, nós que amamos o espaço, queremos ter com ele uma relação séria. Dizemos então que há espaços grandes, espaços pequenos, espaços infinitos, espaços tridimensionais; espaços com tempo e espaços sem memória; espaços escondidos e espaços comprometidos; espaços de odisseia e espaços curvos; espaços correctos e espaços confinados.

Tínhamos prometido, em tempos, que qualquer sinal dado pela trombeta do Apocalipse, seria definido como um momento mais, de aproximação ao lugar onde não há sombras. Tínhamos prometido. Tínhamos prometido uns aos outros.

Talvez tenha sido uma promessa sem convicção. Uma promessa de descrentes. É compreensível que sim. Porque diabo haveríamos de acreditar no que quer que fosse?! Não estávamos nós a ver as estrelas e ao mesmo tempo a duvidar? Não tínhamos nós a percepção de que não éramos deste lugar e continuávamos a sentir-nos em casa?

Foi azar. Disseram alguns. Foi azar disse eu. Poderia ter acontecido outra coisa qualquer. É sempre estranho que sendo o espaço infinito permaneçamos num lugar apenas. Agora poderia sentir-me ao mesmo tempo aqui e em Andrómeda, admitindo que aqui não é Andrómeda. Ou poderia estar em muitas galáxias ao mesmo tempo.

É apenas uma hipótese. Certamente não me sentiria melhor. Certamente teria outros problemas mas não deixaria ter problemas. Certamente sentir-me-ia cansado ao anoitecer, mesmo que não anoitecesse nunca por estar ao mesmo tempo em lugares diferentes.

É cansativo. Ver o mesmo tempo a passar em mais do que uma posição do espaço. O tempo a passar duas vezes por mim sem me reconhecer. Enganado o tempo por eu não estar, como ele esperava, num único lugar.

Isso sim agrada-me. Ver o tempo a esperar por mim.

amm


publicado por prólogo às 22:17
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Tempero
Farás com o amor o que quiseres. Não restam argumentos para nada em contrário.
Basta deixar o rio correr. Ver a água determinada na direcção correcta faz-me perceber-te.

Uma panela ao lume e os legumes cortados com pormenor lá para dentro.
Tudo bem cozido em lume forte. Sal e tempero. Depois tudo moído até à cor única da cenoura.
Provar. Reforçar o tempero. Ferver. O caldo primordial está pronto.

Daqui para a frente há que esperar que o acaso seja benevolente.
Aos saltos ou em contínuo, numa direcção ou noutra, com intenção ou sem ela, haverá sempre vésperas e dias seguintes.

E, se por acaso ao debruçares-te na cerca do teu quintal para veres cá em baixo a agitação plebeia, sentires um qualquer apelo de estranhos impulsos a quererem tirar-te do fértil vale, socorre-te de todas as leis do universo para que em caso algum cometas um erro.

No espaço que vai entre uma galáxia e outra cabem muitos campos de futebol.
Cabem circos e cabe também a largura imaginada de Deus.
É nesse vazio em crescimento que ao anoitecer, quando já estão gastas todas as intenções, repousam as fomes, os prazeres e as folhas secas do loureiro.

Mas ainda vamos a tempo de ficar à espera.

amm


publicado por prólogo às 15:31
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Domingo, 10 de Abril de 2005
Oportunidade
Faltava, no regaço da deusa que pousava para a eternidade, uma flor que quebrasse o excesso de alvura das vestes. O conselho de sábios, os consultores da altura, reuniu de emergência, como é costume os sábios reunirem, para encontrar a preciosa cor que faltava. Na sala encravada na ala esquerda do palácio, equidistante da cozinha e da biblioteca, rosnavam-se fundamentos, empenhados em destruir as cores dos outros mais do que em defender as próprias. Nada de inédito entre sábios ou consultores.

A deusa que pousava para a eternidade pode dizer-se que tinha todo o tempo do mundo. Nada alterava a sua serenidade. A brancura do seu rosto quase não se distinguia da brancura dos tecidos. E o sorriso era também branco.

Mais tarde, os consultores, que eram já netos dos netos dos consultores iniciais trouxeram ao pintor que era já neto do neto do pintor inicial um parecer quase definitivo sobre a flor que ficaria bem no regaço da deusa.

Entretanto o pintor que fora contratado para deixar na tela a eternidade da deusa, e que era já o neto do neto do pintor inicial, entretivera-se, tal como os seus predecessores, a reavivar as cores do quadro, deixando apenas o espaço para no regaço da deusa colocar uma flor.

Viram os consultores que as longas e sucessivas camadas de óleo tinham multiplicado inúmeras vezes a espessura inicial da tela. O pintor, neto do neto do pintor inicial, trabalhava agora em equilíbrio, apertado no escasso intervalo entre a espessa e pesada tela e o abismo da janela.

Quando o sábio mais sábio, neto do neto do sábio mais sábio, leu o nome da flor que seria colocada no buraco negro em que se tinha transformado sobre a tela o regaço da deusa, o pintor despenhou-se pela sua janela de oportunidade.

amm


publicado por prólogo às 12:27
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Sábado, 9 de Abril de 2005
Tentar
Quando, em Novembro, escondi o rosto para não ser visto pela vontade de sonhar, não esperava que as forças da natureza fossem tão decididas. Pensava então que era apenas uma questão de tempo, como se costuma dizer. E era apenas uma questão de tempo.

Quando, em Dezembro, abri os olhos para procurar um instante qualquer em que pudesse sair do meu refúgio, tive que reconhecer, mais uma vez que a intenção continuava atenta. Por instantes, resumi num pequeno movimento do indicador os lugares onde ainda me parecia possível voltar. E voltei.

Quando, em Janeiro, já me concentrava em regressar a uma outra tarefa que me pudesse trazer de novo à identidade, fui abordado por uma sombra que disse chamar-se Medo. Recuei precipitadamente por não saber ainda em que fantasia deveria encaixar a minha relutante verdade.

Quando, em Fevereiro, as neves já derretidas ainda brilhavam nas minhas recordações, pensei, ou pelo menos fiz como se pensasse, em tornar a subir ao tal horizonte que tinha sido determinado no meu destino. Mas o trilho tinha sido apagado pelo cruzamento cerrado de outros sinais. Optei, às cegas, como é costume quando se fazem opções.

Quando, em Março, apareci nas ruínas da casa enorme onde nascera, receberam-me surpresas e lágrimas e outras alterações da correcção dos sentidos. Nada que me incomodasse. Nada que não tivesse já sido visto vezes sem conta noutras voltas da servidão. Nada.

Só em Abril, num experiente dia de Abril, é que me foi entregue a carta que eu esperava. Não me surpreendeu que não tivesse nada a dizer-me.

amm


publicado por prólogo às 21:49
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Sexta-feira, 8 de Abril de 2005
Ocultação
Não há maneira melhor de esconder as coisas do que colocá-las bem à vista.
Este é o processo brilhante que se inventou de tudo dar a conhecer.
Agora ninguém mais dirá que não sabia.
Agora já não se usará mais desconhecer.
Sabe-se tudo. Tudo está dito. Nada fica na sombra.

É sob esta invenção da luz, sob este holofote da evidência que passo a esconder os meus sentidos.
Nada ficará por dizer. Nada ficará sob o manto disforme da ocultação.

E à vista de todos, à vista de todo o universo, terei a segurança de ninguém saber alguma coisa.
É como se agora que já nada resta senão a contínua revelação pudesse finalmente estar só.
É como se debaixo de toda a infernal emissão de clareza e limpidez pudesse mostrar uma terrível transparência.

Aqui estamos, nus e despojados.
Como o rei, como a verdade, como o rio.
Haverá outros dias em que já não será assim.


publicado por prólogo às 23:12
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Início
Sou assim. Venho aqui à tua procura.
Como se fosse este o refúgio onde ainda pudesse encontrar-te nas horas de desejo.
Penso que poderia guardar para mim estes sintomas. Quando penso.
Mas agora não penso muito.
Também não sigo os impulsos. Deixo-os adormecer. Fingindo que não importa.
É isso o que acabo por fazer. Procurar em mim um refúgio para o que não pode ser.
Estranho as palavras. Fluxos de intenções e de humores.
Fluxos de luz e de sombras. Restos de coisas fugidias.

Ontem, de manhã, uma notícia na rádio que falava de afectos e de amizades comoveu-me desproporcionadamente.
Como a água ao lume que calmamente não ferve mas explode ao primeiro grão de sal.

Somos seres estranhos.
Equilibrados apenas em longos fios que dão o prazer de nos sentirmos voar.
E sentimos.
Mas às vezes vem o tempo e rouba-nos, por instantes, o brilho dos olhos.


publicado por prólogo às 22:51
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