A gravidade atrai os corpos
Segunda-feira, 24 de Março de 2008
Forma

"Eu tinha uma fazenda em África...". É esta a primeira frase de uma narrativa que este filme (África Minha) conta com a inteligência de saber mostrar que a primeira frase de uma história é sempre e irrecuperavelmente última de outra coisa.

(Eduardo Prado Coelho)


 



As coisas acabam sempre antes de nos apercebermos.

Na continuidade dos gestos não damos conta da discreta evaporação dos objectos.

O risco sistemático da inércia prolonga os movimentos que já se esgotaram na fronteira.

E, à frente de um rosto imóvel, as imagens perdem o sentido e a direcção.


O nadador dá as últimas braçadas já sobre a margem segura.

Agora imóvel, o cavalo ainda rasga o espaço em potência.

À janela, o passageiro vê na paisagem baça um esforço de persuasão.

No quadro, pintado a cores nuas, é descrito um futuro.

E, no chão do pátio, ainda goteja a tempestade de ontem.


Todo o movimento me recomenda um destino.

E dele chovem palavras de incitamento à desordem.

A quadrícula encarcera o desenho alinhado de certezas.

Parecem elas querer dizer outra coisa que já não sabem por esquecimento.


Não há meio termo.

Mesmo que seja lá que se passe todo o tempo.

Entre o regular bater de um coração e a fria redundância da neve.

Espaço vazio, mesmo de faltas e de lacunas.


Passa-se o tempo na ausência.

A corroer esperanças, pedaços de lenha e lágrimas.

Peças soltas de uma cabeça quebrada por ambições inverosímeis

Em dois curtos passos o salto: do universal à singularidade.


Em todos os lugares são deixados vestígios de sangue.

Marcas que se organizam para deslocar a razão.

Entre a desistência e a revolta.

Elas próprias ávidas de vestígios de sangue.

Tal como antes, matar para não morrer.


As coisas começam sempre antes de nos apercebermos.

Seja por acaso ou por destino, o resultado é o mesmo.


Sísifo


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Segunda-feira, 3 de Março de 2008
Rasto

Cada vez mais as palavras se escrevem de silêncio.

A história não deixa de ser a minha história e é contada com tempo como se ainda houvesse tempo.

Pouco importa o pouco que sabemos sobre o que é o saber.

Apenas contam os passos que se contam enquanto se dobram as esquinas que escondem os lados adjacentes.

Passos que dou à procura da palavra que ainda falta para preencher o enigma.

Jogo que se faz ao entardecer com os restos mortais de um dia mais.


Cada vez mais as palavras se dizem por gestos.

Foge de nós o momento que estávamos à espera.

Foge de mim o lume que antes tinha iluminado os dedos pálidos.

Mas não são bem fugas.

São aproximações a outros lados que já têm consigo a sombra e a matéria condensada.

Supõe-se, segundo os antigos, haver um lugar onde as vozes aproximam o belo.

E, a ser verdade, vale a pena o voo sobre lugares de tais promessas.


Cada vez mais as palavras se escondem.

Os lugares chamam-se agora por números inteiros.

Calculam-se com luzes nervosas a cintilar de precisão.

Cada momento é um excesso insuportável à espera do seguinte.

Não sou capaz de descer essa rua inclinada.

A palidez do projecto dá-me náuseas, e não encontro no caminho a alternativa à distância.

Pergunto às sombras que tempo falta para o próximo comboio.

O tal que nos vai levar para o lugar anunciado.

Dizem-me silêncio.


Cada vez mais as palavras morrem.

A figura ausente acende em brasa o último cigarro.

Uma palavra pode ser bela mesmo que não seja o que diz.

A ausência tem peso e simetria, baila à beira do abismo com vontade de partir.

Não é com gestos bruscos que empurro o tempo.

Cada segundo no seu lugar.

Pela última vez. Irrepetível.

Para onde vai o tempo que por aqui passa?

Que pressa o leva daqui tão rudemente?

Que sábio encanto o move com tanta decisão?


Cada vez mais as palavras se esgotam de tédio.

Descuidou-se a certeza de conhecer o futuro.

Pairou sobre o medo a astúcia banal da alegria.

Caiu a águia no chão da rua iluminada.

Às vezes basta uma letra para que tudo seja diferente.

Ou a pontuação que não pontua.

Um simples som digitado com lenta ternura e o tempo cala-se de espanto.

Vago bater de asas de um viajante eterno que passa pela arquitectura da matéria sem deixar rasto.

Menos a memória que fica pousada no ramo alto de um sobreiro.


Sísifo


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Quinta-feira, 3 de Janeiro de 2008
Eco

Muitas vezes é melhor o silêncio.

Uma banal ausência presente.

Ou o contrário.

Jogo de palavras que se não dizem para não acordar dormências ou sonhos.

Passa-se sobre o ranger inquietante do soalho a ouvir fantasmas.

Acontece sempre tudo no silêncio.


Portas que batem, ferrolhos que correm, chuva cansada.

No silêncio ouve-se o impossível.

Há segredos a fugirem no murmúrio do ar.

Um brisa improvável e passos a descer a escada.

Respiração.

Um relógio.


É comum que se use o silêncio para confrontar o tempo.

Na música acorda o sentido da nota seguinte.

Na batalha antecipa a violência da morte.

No amor afina a atenção para o odor dos corpos.

No pensamento abre uma brecha para a divagação.


O silêncio é uma indisciplina.

Carrega o peso ingrato do desafio.

Muito mais do que o grito irado.

Muito mais do que o insulto ou a promessa.

Mais ainda que a ignorância militante.


De vez em quando é necessário um tempo de silêncio.

Uma pausa, um salto, uma falta, um soluço, uma distracção.

Do intervalo regular das rotinas sai um momento de inquietude.

Nas bermas do caminho o reflexo de passos.

No céu os riscos brancos.


No topo da montanha ouve-se, em certos dias, o poder do silêncio.

Rasga-se sobre a mente com uma violência insuportável.

Pesa mais que a tortura de um castigo injusto.

E mesmo assim é necessário um tempo de silêncio.


Como a tortura, como o medo, como a ingratidão.

Só mais tarde saberemos, no ajuste de contas, dos benefícios do silêncio.


Sísifo


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Sábado, 8 de Dezembro de 2007
Conto

Cumprem-se todos os dias novas intenções.

No passo certo com que tento deter o cansaço há sempre uma variante de tempo e de espaço.

A repetição nunca se repete da mesma maneira.

E o gesto que se espera vem sempre antes ou depois da cadência.

Nenhuma medida se satisfaz consigo mesma, sem se deter na comparação.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.

No que estava escrito, tudo era claro menos o número.

De todas as coisas se podia falar sem receio nem omissão.

As palavras seguiam-se umas às outras apenas pelo prazer de dizer.

Depois de cada frase havia sempre outra frase que a negava.

Mas o número, não.


As contas que faço ao volume do meu medo nunca dão resto zero.

A altura a que chega a minha voz é uma oitava do que era.

O preço de cada instante de prazer tende para infinito.

A área da superfície do meu sorriso, tende para zero.


Mas isto é nada, com o que se passa à minha volta.

O que interessa são os números grandes e os grandes números.

A competição é pelo volume de sangue a escorrer pelas valas.

Pela quantidade de gente que passa fome.

E pelos ritmos de produção de espingardas.


Também interessam os números do euro-milhões.

Os números da bolsa, do défice, do desemprego, da inflação.

Interessam os golos, os pontos, os espectadores e as receitas da bola.

Os custos de aeroportos, o preço do petróleo e a temperatura da Terra.

Interessam muito os números de circo da estatística das sondagens.

O ordenado mínimo, a esperança de vida e o número de crianças.


Sempre soube que só o número poderia alguma vez matar-me.

O que estava escrito era uma forma de passar o tempo e olhar para ele com ironia.

Liquidavam-se em palavras as dívidas de ignorância.

Passava-se para o momento seguinte numa pirueta de gestos e sons.

E estava na mão a ligação física à terra de que éramos matéria consciente.


Mas o número chegou para nos contar histórias trágicas.

Para nos comparar uns com os outros sem nos ver.

Para nos desenraizar com raízes quadradas.

Para nos somar, subtraindo, e nos multiplicar, dividindo.


Sísifo


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Quinta-feira, 18 de Outubro de 2007
Adiamento

Na base da montanha espera-se um milagre.

Saio de manhã cedo para o meu mistério e vejo agitação nas ruas.

Rostos ansiosos, gestos bruscos, gritos nas vozes.

A sombra é ainda grande e a cidade ilumina-se à mão.

Escolho o trilho mais seco para ouvir no chão os meus pés.


As linhas paralelas encontram-se no infinito.

E uma mentira pode sempre encobrir-se com outra.

A falta de esperança não me entristece.

Nenhum mundo é deste reino.


O movimento muscular aquece o coração e o sonho.

Cada passo presume outro e bastam-se todos com essa certeza.

O cansaço, hoje, ainda está longe.

Vem apenas quando o objectivo já está à vista e já é inútil.

Como os gritos da partida, como os olhares ansiosos, como a esperança.


O tempo acompanha-me calado.

Sinto-o ao meu lado, monótono e irrepetível.

Faz de cada passo uma festa mas a timidez esconde-lhe a exuberância.

Entre mim e ele nem uma palavra.

Porque também o silêncio vem connosco.


É assim que se repetem as minhas manhãs húmidas ou secas.

A própria paisagem deixa-nos passar como se tivéssemos vontade.

Mas a vontade não veio por não saber comportar-se.


Vamos sós, portanto.

Eu, o tempo, o silêncio e a minha carga.


À tarde voltaremos com o cansaço atravessado na garganta.

A sensação perfeita de uma missão não cumprida.

O corpo arrastado na sua segura insegurança.

A roupa colada ao ardor da pele.


Nas ruas, os rostos ansiosos, bruscos, em gritos.

Assustados mas contentes pelo milagre de estarem vivos.


Sísifo


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Domingo, 16 de Setembro de 2007
Vácuo

Aceito que nos passos que descrevem um percurso há uma equação universal,

Nos pequenos pormenores de todos os dias sou capaz de ver teorias de tudo,

E nas dobras coloridas dos caminhos encontro referência a leis fundamentais.

Aceito que esse possa ser o campo de uma razoável crença.


Leio, na escuridão preenchida de estrelas, obscuros romances inacabados.

Sinto, no esforço muscular da subida, as marcas da escultura do tempo.

Percebo, na violência cinzenta do vento, a harmonia frágil da consciência.

Ouço, próximo da margem do rio eufórico, a atracção universal dos corpos.

Sonho, quando a força já não obedece, a equivalência entre a dor e a luz.


Acima das nuvens há um horizonte maior,

A distância sobre a verdade transforma todas as coisas em pequenos nadas,

O relativamente difícil torna-se relativamente fácil,

E os dons que suponho anteriores a cada gesto, tornam-se súbito acaso.


Descer de novo à terra e à sua vã esperança é um suave tormento.

Cada ciclo aproxima-me de distâncias cada vez maiores.

A mancha cinzenta do real revela-se em pormenores escurecidos,

E das paredes húmidas desce o aroma acre do sofrimento,

Enquanto se testam, sob os rochedos, formas dementes de destruição.


Não era isso que tínhamos pensado no início.

Queríamos saber apenas como esgotar nos poros a curiosidade;

Vasculhar a profundidade e o exagero, com prazer e delírio.


Queríamos encontrar uma razão que soubesse muitas razões.

Queríamos tomar connosco o tempo como companheiro de viagem;

Sacudir, na gargalhada ocasional, a certeza biológica do efémero.


Mas há, no discurso ambíguo da inteligência, lugares abandonados ao seu destino,

E o opaco medo de não ser, parece resistir a todas as tentativas de clarificar a natureza da matéria.


Sísifo (sobre a bomba de vácuo)


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Sexta-feira, 17 de Agosto de 2007
Longe

À distância, o cimo da montanha não se distingue do topo da montanha.

Isso poderia ser uma razão suficiente para não me preocupar em estar num lugar ou noutro.

E foi assim que senti sempre o meu lugar, estivesse no topo ou na base do gigante megalítico.

Entre o alto e o baixo da rigorosa construção dos elementos, não seria eu a escolher ou dizer o melhor.

Para a natureza indiferente, uma e outra coisa têm um lugar que não permite hierarquias ou ordens.

E eu faço parte, queira ou não, dessa indiferença da natureza.


À distância, qualquer que ela seja, a diferença que se encontra entre as diferenças, é mínima.

À medida que a distância aumenta, as diferenças tendem rapidamente para zero.

E seria fácil rever as diferenças e pensar que as diferenças mínimas não chegam a ser diferenças.


Quando a montanha parece, assim como hoje, íngreme e cheia de impossibilidades, olhar para ela a grande distância, ainda que apenas pelo olhar da imaginação, tem esse efeito de colocar as diferenças numa medida que possa ser medida com o curto discernimento que acolho.

Vejo ao longe a altura imensa que transponho e o peso imenso que transporto, e tudo parece menor e mais leve, deixando ao passo o seu ritmo mais fácil e veloz.

Do olhar distante recolho ensinamentos dúbios que auxiliam por momentos a relatividade fortuita dos sentidos e das dores.


À distância, pode olhar-se para o outro lado da terra e não ver senão grãos de areia, e, semeadas nela, cores que encantam e disfarçam as abissais diferenças que para sempre ficam ocultas.


Mas é essa mesma indiferença que me arrasta para o largo horizonte.

Lá em cima vêem-se as mesmas estrelas, à mesma distância e com as mesmas cores.

Mas há mais estrelas e o céu é mais imponente.

Lá em cima a diferença é maior... e a indiferença também.


À distância este ocaso que me preenche é invisível excepto para mim.

Vejo os astros a moverem-se coordenados como se tivessem uma intenção e me ignorassem.

Penso que é o meu o olhar que lhes dá existência e com isso tento sobreviver.

A minha função de observador do céu, dá sentido ao mesmo céu - retira-o da inutilidade.


No topo da montanha falo com os astros que não me escutam.

Tento escutar os astros e ouço silêncio.

O que quer que eu diga esgota-se na curta distância da minha voz.

Passa-se qualquer coisa com a natureza que não se liga a nada nem a ninguém.

Deve ser isso que nos humanos é errado.


Pressupor que a distância pode apagar todos os ecos e todas as diferenças.

Gerar nas mentes o esquecimento.

Diluir com rapidez os sentidos e as formas.

Mas no fim persistir em algum lugar um vazio que só a natureza inorgânica é capaz de suportar.


Sísifo


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Domingo, 24 de Junho de 2007
Surpresas

Neva no topo da montanha.

O frio e a sua mancha branca regressaram.

Os ciclos, desanimados com a rotina, preparam surpresas e tempestades.

Os caminhos tornam-se indiscerníveis e os passos marcam-se pesados.


Transporto um mundo às costas e com ele a minha vida.

Não é muito nem pouco, apenas o essencial.

Restos de coisas que foram restos de outras coisas.

Como o nosso corpo é o resto dos outros corpos que o fizeram.


Mesmo que eu não saiba ou não queira saber, houve alguém antes de mim e haverá alguém depois.

Os passos que ficam na neve serão tão efémeros como o meu medo.


Lá no topo, as horas são mais longas e o frio mais frio.

Agora que a temperatura é baixa ninguém lá vai, e a solidão é sólida.

Em nenhum caminho me cruzo com outra palavra.

Apenas o meu monólogo de louco que não quer ser.


Quando se fala é contra o silêncio.

É o único que perece perante a voz.

E o que digo, e digo porque penso, é mais do que penso e digo.


Há também a voz do vento.

Voz que diz o que sabe, como se soubesse.

E é o vento a coisa mais humana que encontro nos lugares altos onde me empurro.


Para todas as coisas é necessário estar preparado.

Mas há tanta variedade de coisas, que acontece sempre uma surpresa.

E depois, na surpresa que nos surpreende, não há nada de novo...


Esse não é o meu caminho.

Não estou à espera de surpresas.

Estou como se estivesse preparado para todas as surpresas.

Jogo com elas e esqueço todas as suspeitas.

O que vier a seguir é ainda uma daquelas coisas que podem ser.


E o que pode ser, o que está dentro do horizonte das possibilidades, faz parte do saco grande de surpresas que na infância soubemos estar à nossa espera.


Não sou eu que espero as surpresas no topo da montanha.

São elas que estão pacientemente à minha espera.


Sísifo


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Sexta-feira, 1 de Junho de 2007
Ácido

Nada tem que ser como eu tinha pensado.

Os frutos caem da árvore sem chegarem a perguntar porquê.

Circulam os afectos da mesma forma que a água pelos canais.

E nas sombras mais obscuras não se escondem monstros nem gemidos.


Aquilo que conta quando se fazem as contas sem fazer de conta, é o que se sente quando se sente.


Sobre o abismo que se avista do topo da montanha paira sempre a tonalidade húmida de um certo infinito.

O relativo abandono gera no coração uma vaga sensação de perda.

Como se nos confins onde custa a chegar fosse necessário um ar rarefeito.


Cada momento de azul que amanhece sobre o horizonte é uma dose suplementar de incerteza.

Vê-se, ao mesmo tempo que se ouve a monotonia dos passos a trilhar a areia, o rasto sistemático da repetição e a atracção sublime do espaço.

Não saber acaba por ser o destino mais natural.

Oculta sobre a névoa está a ambição e a prática corrente de comparar os sonhos.

Todos concorrem para afastar o pensamento do seu caminho.


Nem sempre chego ao topo com a mesma ansiedade.

Dias há que parecem claros e luminosos.

Aí, os sons são mais soltos e as verdades menos necessárias.

Cumprem-se os rituais e retoma-se o canto na dobra mais simples do mapa.


Um dia, quando, por acaso, se reunirem as condições especiais, vou pensar em todas as consequências de subir e descer esta montanha, sem que nada de sagrado me obrigue, a não ser esta genética que ocasionalmente conformou as moléculas emprestadas ao meu corpo.


Sísifo


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Sexta-feira, 11 de Maio de 2007
Cansaço

Todos os dias cumpro o meu plano.

O ritmo e a rotina confundem-se.

À distância, no leito do descanso, ocorre-me mesmo uma certa melodia.

Como se numa dada dimensão, às coisas sobrasse significado.


Na distância que se desenvolve repetida sob os meus pés, nos caminhos que vão sendo sempre o mesmo de outros dias, vejo, pela previsão própria de não esperar, o ciclo finito da importância.


No alto de cada dia há o cansaço adequado a eliminar promessas.

Tudo o que aprendi esqueço pelas mesmas razões.

E logo a seguir há o recomeçar do silêncio.


O recado de cada hora é a expressão do seu limite.

Sei, por querer saber, a curta vida das ilusões.

Aprendi, por ignorar, que se ousasse seguir, seguiria sempre.

Vi, por me ocultar, lugares mais além do horizonte.

Perdi, por desejar, uma boa ocasião de ser sentido.

Ouvi, pelo silêncio, o cântico orvalhado da servidão.

Fugi, emparedado, do medo que todos os dias me alimentou.


Todos os dias cumpro o meu plano.

Mesmo que o meu plano são seja meu.

Mesmo que não tenha feito nenhum plano de algum dia cumprir planos.


Há uma cadência própria nos passos que marcham a favor do seu destino.

Latente, na invisibilidade há uma presença rigorosa.

A harmonia é tão aparente como o desgosto de ficar de fora.

E lá fora, no erguer subtil da tempestade, queremos ainda que sejam sinais.


Cumpro o meu ciclo de verdades.

Arrisco apenas o ligeiro ardor dos olhos.

E à noite, enquanto se fazem fogueiras para acender desejos, ocupo o meu corpo a iluminar os limites que não quer.


Sísifo


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Segunda-feira, 23 de Abril de 2007
Sedimento

Houve um tempo em que a luz parecia ser o lugar definitivo.

Todos os caminhos se lhe dirigiam e não havia dúvidas.

Cada passo que se dava tinha-a por projecto e o que ainda não era, haveria de ser.

Pela luz passavam todos os sinais e toda a esperança.

Era impossível admitir, sem luz, mais do que o inferno.


No meu rotineiro caminhar para o alto estava implícita a luz.

Lá de cima, do topo, da distância, emanava a luz e a clareza.

Era assim para mim e para todos, e não havia outro caminho.


No prosaico rolar da gravidade adivinhava-se o refluxo da escuridão.

Descia, e o deslizar inclinado do destino era o assombro.

Em baixo, no fundo da montanha, a escassa luminosidade era disputada com a morte.


Na pena de subir e descer, os deuses tinham engendrado o maior dos sofrimentos:

Conhecer a luz e ter de a abandonar pela escuridão.


Outras penas há em que a pena se reduz por não saber que se pode viver sem pena.

Ou, a pena só é pena quando se lhe conhece a ausência.

Reconhece-se, por isso, que a ignorância é uma sorte.


Mas não é por isso que os poderosos manipulam a luz.

Querem apenas o equilíbrio rudimentar que evita a violência da revolta.

Luz quanto baste para algum desejo.

Luz tão pouca quanto a necessidade.


Depois foi a catástrofe do ultravioleta.


A luz já não é luminosa e o topo da montanha já não salva.

Os passos que se dão para subir não se distinguem do descer.

Na profundidade das masmorras vêem-se os pormenores de um rosto com rigor atómico.

E o que se sabe tem o mesmo valor do que não se conhece.


Os homens sentam-se às escuras para combinar os assaltos e as orações.

Rebuscam no lixo, com as mãos nuas, e alegram-se da sua precaridade.

Soltam uma gargalhada rugosa e o solavanco bestial fá-los felizes.

Despedaçam com os dentes os mistérios, os segredos e as frustrações.

E dizem, sempre que podem, que é assim que a vida é.


Passo por onde posso com um sorriso, para que não me sigam.


Sísifo


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Sexta-feira, 13 de Abril de 2007
Mandamento

Talvez não valha a pena perceber.

Joga-se com o sentido e no fim cada um tem a sua boa razão.

Cada acto acaba a valer por si, e ao mesmo tempo por aquilo que não é.

O mérito está apenas em não perder; em não sentir nunca a derrota.


Cada viagem ao lugar central é um regresso.

Há ritmos inscritos nos materiais a contrariar as grandes opções.

Sobre os sonhos ainda se dirá serem eles a verdade.

E logo a seguir a morte ou a desistência.


A Lua, por exemplo, faz o seu ciclo como se não soubesse do tempo.

No horizonte há estrelas que se mostram nuas eternas.

Sob o manto pacífico da Terra movem-se massas imponentes de fogo.

E nas noites mais dóceis é possível olhar riscos de luz.

E os finos bordados do medo no escuro.


O nada que faço aqui é tão sério como a nuvem que se forma um instante.

Cada vez que o Sol nasce ainda, é uma primeira vez para sempre.

As rosas deixam cair as pétalas para depois.

Vazias.


Desço outra vez este caminho disfarçado de condenado.

O que sou, seja o que for, é tão pouco como o disfarce que uso.

As botas gastas do atrito do tempo são ao mesmo tempo que o meu rosto.

As gotas de água que transpiro já as bebi muitas vezes.

E o alimento que vai crescendo agreste na beira do caminho já de novo foi meu.

E eu já perdi da minha posse tudo o que outra e outra vez retive,


Nada é só uma vez para sempre.

Mas não é assim que se sentem as coisas.

O que se sente, o que ocorre no intervalo curto em que somos, é uma vontade desfocada de querer o que não é e fugir a todo o custo do que se mostra.


Talvez não valha a pena perceber.

Quando o vento já perdeu a força que tinha de mandar.


Sísifo


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Terça-feira, 6 de Março de 2007
Importância

Há, nos gestos do dia a dia, um apelo muito forte ao esquecimento.

Enquanto se sobe a intransigente montanha, os pensamentos revesam-se até já não terem sentido.

O esforço de levar outra vez o pé para a frente do outro, esgota a sensibilidade e o entendimento.

É difícil que no topo ainda haja energia para fruir a paisagem.

Nada é comum quando os músculos se retesam para um último balanço.


Se eu tivesse um deus a que não chamasse acaso, di-lo-ia uma combinatória.

O meu olimpo tem uma fauna própria que não me aquieta.

Diverte-se a mitificar o número e a diversificar os caminhos.

Mesmo assim, o tédio é o patrono mais poderoso.

Acima do correr das nuvens já não mora a ameaça ou a salvação mas o vazio.


Nenhum acto é tão autêntico como o trabalho.

Quando queremos ser sérios e profundos dizemos que trabalhamos.

E é nesse gesto mágico e económico que se suportam os nossos sonhos.

A labuta como método de render homenagem à existência.

Culto do que não é oculto nem ficcional.


Nenhum passo é tão autêntico como o que não se deu ainda.

A energia potencial cresce enquanto as expectativas sobem aos lugares mais altos.

Há muito de irremediável na convivência com a solidão.

Diz-se a palavra e ela não chega a lugar audível.

Nem regressa.

Os sons atravessam o tempo como neutrinos.


Cada pensamento que se forma na escalada perde-se a seguir agarrado à gota de suor.

As melhores das intenções formam-se em nuvens de chuva ácida.

Neste olimpo não há nenhum deus a quem pedir clemência.

Não há também vontade de pedir, porque os que podem dar é porque roubaram.

O desequilíbrio equilibra os sentimentos.


Não fora a certeza de o poder poder não ser outra coisa que o acaso, e o ódio seria o atalho certo para a existência.

Não é aqui nesta montanha, mas é noutras em que se faz da vontade escravatura.

Lá em cima a vista é bonita.

Há muita beleza para escutar e sentir.

Mas antes disso há sempre um medo de perder qualquer coisa importante que não se sabe o que é...


Sísifo


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Terça-feira, 13 de Fevereiro de 2007
Lei

São os fantasmas que governam.

Vivem na escuridão, na sua nocturna providência, e mandam.

Regulam os gestos e os olhares, encaminham os desejos e dissimulam.


São os fantasmas que governam.

Dirigem os passos de maneira subtil.

Sorriem sobre o modo ausente de ser.

Empurram com elegância cada pensamento para o abismo.


Não deixam nada ao acaso, a não ser a aparência de que é o acaso que comanda.

E é o acaso que comanda, logo no nível acima.

Mas os fantasmas ficam contentes por sentirem que no nível em que se movem, e fazem mover toda a gente, são eles que determinam.

Ficam contentes no seu papel de senhores da vontade.


É curto o tempo da existência.

E inconsequente também.

Mais quente ou mais frio, para o planeta tanto faz.

Um homem e uma galinha apenas diferem no grau de destruição.

E na dimensão dos dejectos.

Para o planeta.


Sobre o planeta mandam os fantasmas.

Tiraram o poder aos deuses que primeiro inventaram para isso.

E condenam tudo o que lhes tenta sair debaixo da sola aveludada.

Marcam com um ferro em brasa o tresloucado.

Dão como exemplo o súbdito menor.


Estranha linhagem esta que não partilha o sangue mas o tilintar das moedas.

A montanha onde subo e em que cumpro a minha pena não tem ainda tributo.

Mas virá o dia em que, para o meu bem de condenado, será necessário que a minha pele se entregue para leilão.


São os fantasmas que governam.

Encostados uns aos outros, de liturgia em punho, defendem-me de mim.

Traçam do destino as linhas principais e ajudam-me a identificar o ouro e a lama.

Aquecem os meus neurónios para que se alegrem com a felicidade dos fantasmas.


Digo-lhes que a minha pena é antiga e sobreviveu a multidões como eles.

Depois deles virão outros.

E eu permanecerei aqui, feliz por não ter razão.


Sísifo


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Segunda-feira, 1 de Janeiro de 2007
Crédito

Não procuro o mistério nem a assombração.

Não me interessam os lugares que servem de esconderijo às lendas.

Desprezo realmente a ocultação e o truque.

Não tenho paciência para os enfeites nem para as divindades.

Aborrecem-me de morte os exercícios de adivinhação.

Não consigo olhar duas vezes para as ilusões fanáticas.

E a magia serve-me apenas para brincar.


Prefiro dizer que não sei.

Que ainda não, e que talvez nunca venha a saber.

Pensar a ignorância como o estado em que se está à espera.

Pensar o desconhecido como lugar onde ainda não cheguei.


Mas este não é hoje um lugar muito habitado.

Só veja ânsia de acreditar.

Só vejo ânsia de receber.

Dificilmente encontro alguém à procura.

É raro o rosto que aceita morar no intervalo entre a escuridão e a luz.


Perfilam-se no horizonte exércitos rigorosos a defender verdades.

Constroem-se muros a separar mundos.

Matam-se em cada reduto todos os sinais de crítica e razão.

Rendem-se os pensamentos à sabedoria enlatada.

E acredita-se, acredita-se muito, acredita-se em acreditar.

O crédito como Deus acima de todos os deuses.

Alinham-se contra uma parede os corpos que não alinham.


Estaremos a chegar ao fim da linha?

Não sei...

Não procuro o mistério nem a assombração...


Sísifo



publicado por prólogo às 10:42
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Quarta-feira, 6 de Dezembro de 2006
Repetição

O meu prazer é a rotina.

Em cada dia é completamente claro o meu percurso.

Todos os dias, todos os meses, todas as estações, todos os anos.

Pego na minha carga e subo a montanha.

Faço o meu esforço diário quase com prazer.

E é um prazer chegar lá cima e aliviar o corpo.

Delicia-me então o efeito majestoso da pedra a rolar violenta pela encosta reduzindo de novo a zero o meu trabalho.

Nunca me desilude este meu caminho.


Falam-me do aborrecimento, da monotonia de fazer sempre o mesmo gesto.

Dizem que o meu viver é absurdo.

Condenam na origem a minha aceitação do castigo.

Negam a humanidade do meu processo.


E eu não sei que palavras usar para me defender, sem ferir a felicidade imensa que vejo brilhar nos olhos dos outros que, ao contrário de mim, não se enredam na simplicidade da rotina nem na vastidão do absurdo.


Fico a olhar cheio de esperança, convencido que estou da inutilidade do meu método, para a bonomia ardente das vidas envoltas na atraente pirotecnia da diversidade industrial.


Agrada-me vê-los.

Perceber as estratégias que usam para ludibriar o destino.

Encontrar aqueles movimentos bruscos que dão sentido às suas vidas irredutíveis.

Aperceber-me dos jogos com que se confrontam para estarem confortáveis.

Ver de longe as piruetas que fazem para se sentirem vivos e actuantes.


Talvez sejam excessos da minha rotina, estes movimentos de voyeur sobre os meus vizinhos felizes.


Não me lembro quando deixei de procurar contentamento.

Antes ou depois de condenado, não sei.

Escondeu-se da memória como os outros propósitos de ser.

Ilustrar cada dia como exemplo passou a ser o único horizonte.

Uma derrota conseguida com investimentos brutais.


Não sei como dizê-lo.

Não sei como afrontar o meu sentimento imediato.

Não me ocorrem as palavras ao mesmo tempo necessárias e suficientes.

Quem estaria na disposição de concentrar a atenção num disco riscado de evidência?

Quem acolheria uma frase que não picasse, de alguma forma, as entranhas?

Quem daria atenção a um gesto que não ostentasse potência?

Quem olharia duas vezes para um rosto sem marcas de escândalo?

Quantos contariam os batimentos suaves dos que não contam?


Nesta montanha há muitos caminhos e todos se chamam difíceis.

Uns sobem, outros descem e outros destroem.

Os antigos diziam não haver nenhum caminho fora desta montanha.

Eu não sei.

Não tenho nenhuma fé.


Sísifo



publicado por prólogo às 19:47
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Sexta-feira, 17 de Novembro de 2006
Ocaso

Já não gela o topo da montanha.

Escoaram-se as últimas águas anos atrás, quando o tempo quente substituiu a arte de sobreviver.

Junto com a água foram alguns sonhos, e o que se quis que sobrasse como método, foi deixado ao acaso.

Havia então uma providência que sabia por nós todos os caminhos.

Ignorar não era, então, uma coisa boa, e acreditava-se.

A fé era toda feita de visões e parecia que a alavanca não era uma força da banalidade.

Entre a terra e o corpo havia transacção de fluídos vitais.


Sou outro velho do Restelo.

Perco o meu tempo em justificações impossíveis.

Comparo todos os movimentos com a posição onde estava antes e tiro daí impressões de desilusão.

Não são fáceis os caminhos de quem vê.

Por ter passado a ser rotina tropeçar nos pequenos ramos de que antes a tradição troçava.

Hoje come-se com a cegueira e olha-se para qualquer diadema com a ingenuidade dos primitivos.

Cada divindade decadente deu origem a múltiplas divindades douradas.

Os deuses só são deuses enquanto não lhes chamamos deuses.

Entretanto governa o que ainda não tem nome.


Não, não é bom saber.

Pesa sobre os ombros a insuportável responsabilidade.

O que interessa é viver o momento mesmo que seja escasso e precário.

Logo a seguir tropeçar no gesto ingénuo, lido como desgraça e calamidade.

Confundido o instante com o preço da eternidade, dilui-se o rosto seco da facilidade em trejeitos de inocência.

Em algum lugar o génio deixa a lâmpada acesa para que o caminho seja cada vez mais fácil ao cada vez mais néscio.

Orgulhosamente néscio.


Já não gela o topo da montanha.

As estações onde antes parávamos para beber já são secas, ausentes, desabitadas.

Todos os regatos confluem para um lugar apenas onde se afogam prazeres simples e banais.

Fora eu eterno e o incómodo me mataria.

Mas assim vou esperando que a intenção casual que colocou na terra a vida, siga o seu curso de indiferença perante a indiferença que se olha a si mesma com desdém.

A montanha não teme diluir-se no nada.


Sísifo



publicado por prólogo às 19:41
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Quinta-feira, 2 de Novembro de 2006
Livremente

Não quis que soubessem o meu nome quando atravessei a altura máxima da montanha.

Assim também tinha guardado para mim os lamentos e evitado que me vissem eu.

Da mesma forma me dirijo aos lugares ermos e de lá volto no escuro da invisibilidade.


Ontem morreu alguém na montanha.

Tinha todos os gestos certos mas houve um que falhou e a dureza do tempo aproveitou-se.

Não me ocorre agora a tristeza por isso ou por tantas vidas que ontem se perderam.

Ocorre-me antes pensar nesta natureza que cumpro em mim e a que não dou nome.


Não sei até que ponto é patético desfolhar a luta diária com os elementos.

Eles vêm de diversas formas e tomam as nossas mãos nas suas para sempre.

Invadem a propriedade e a atenção como se não pudéssemos ser.

Negam os desejos por um acaso em que não estejam interessados.

Limitam os movimentos às zonas nobres como se esperassem com paciência infinita.


Mas, não, eles, os elementos, não querem.

Passam pela voz pendente dos sonhos e determinam a partir da indeterminação.

Desdenham das poses sem chegarem a desdenhar, indiferentes.

Não pousam o pé na nossa lógica e seguem o seu caminho sem olhar para o caminho ao lado.

Dispersam os porquês em passos aleatórios, abismos, potências, fogo.

Movem o peso pesado do tempo na margem da absoluta marginalidade.


A terra seguiria divina a sua marcha sem nós.

Levaria o seu impulso até que outro impulso maior a perturbasse.

Pó, pedra e lume seguiriam ainda o rasto do lume, da pedra e do pó.


Aqui, no meu passo simples, sou tão natureza como natureza é o trovão.

Sou tão inofensivo como inofensivo é o riacho que desce a gravidade.

Sou tão apático como apática é uma lua a honrar um sol.

Sou tão leal como leal é o frio que volta no inverno.


Não há nomes que cheguem para dar a todas as coisas.

E, por isso, algumas ficam esquecidas de ser e de se ouvir.

Como se a indiferença nascesse de não haver um lugar perfeito para a colocar.


Fogem pelo caminho passos mais apressados que os meus.

Vão animados à procura do que resta para enfeitiçar.

Querem, porque a vontade os impele, querer outras coisas que também querem e fogem.

E o fluir constante dos desejos faz animar o vento e as forças ocultas.


Lá longe, no lugar onde se fecha o horizonte, e onde parece que as espécies outonais se comprimem, há nomes a morrer e outros a nascer, selados os documentos que a história irá avidamente recolher.


Sísifo



publicado por prólogo às 20:29
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Sexta-feira, 13 de Outubro de 2006
Pouco

Gosto de ser esta coisa pouca que não tem anseios de universo.

Parar por aqui, pelas curvas apertadas dos lugares sombrios, sem lamentos nem lágrimas, sem poder nem ambição.

Subir todas as manhãs a ladeira que leva ao tal lugar que nada tem.

Pousar o corpo à noite na escura tonalidade da enxerga sem que o sonho perturbe a mansidão do silêncio.


Gosto de pairar sobre a premonição das águas que dizem canções insignificantes.

Voltar alegre da minha dívida, sem temor de me perder em somas que não conheço.

Saltar imune sobre as chamas que dançam lúbricas à espera de gestos perdidos.


Gosto de vogar pela planície, cansado e ébrio, retendo o sono para sentir ao máximo a beleza.

Partir para cada viagem com o lastro apenas das imposições legais.

Sem perfumes nem medos, sem agasalhos nem vícios, sem preces nem sapatos.

Sentar-me à beira do caminho com o sol a pique e o suor a escorrer a pele.

Agarrar o rosto fresco da água que desce densa sobre a carne e a lava.


Gosto de ler nas folhas secas os pormenores do destino e jogar as cartas escritas pelo amor.

Vigiar de longe o prazer verdadeiro das crianças a brincar.

Procurar palavras que saibam dizer bem das coisas que ainda não existem.

Sentir o vento massajar o cabelo e arrefecer as preocupações e os sentimentos.


Gosto de ter este vazio das mãos como riqueza maior e usá-lo para me saciar.

Seguir ligeiro pelo caminho do meu acaso sem temer à frente o falcão da morte.

Entreter-me com o som dos passos a soletrarem ritmos sobre a calçada.

Olhar a noite mais escura à procura de sinais que sobrem da ofuscação do dia.


Gosto de acompanhar a pacífica resistência dos anos com gestos suaves e prudente entendimento.

Virar as páginas do caderno que comecei a escrever na infância.

Beber o café de aroma puro que traz de África o sabor e a excitação.

Antecipar o desejo e o gosto daqueles que conheço porque amo e que amo porque conheço.


Gosto de, no auge da subida, quando o esforço já ultrapassou o seu próprio limite, soltar, contra vontade, a esfera empedernida, e acompanhar a catástrofe da queda com o grito rouco que solta, enfim, do interior do corpo o milagre do reconhecimento.


Sísifo



publicado por prólogo às 23:23
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Quinta-feira, 5 de Outubro de 2006
Sempre

Há quem pense que a montanha a que subo, perdendo-me na dor e na sombra, é o conhecimento.

Seria então a minha vida uma metáfora, um jogo de palavras.

E daí se concluía que a esfera que teimosamente faço rolar montanha acima, nada mais seria que o esforço necessário a todo o saber.

Nada disso é verdade a não ser o jogo de palavras.


Tal como as espécies que não se adaptam, extinguiram-se os deuses há muito tempo.

Inadaptados também, postos à margem, numa memória apenas evocada pelo poder, os deuses saíram de cena abandonando o mundo à sua sorte.


O tribunal que me condenou já não existe.

Caducou juntamente com a esperança e a justiça.

Finou-se por falta de condições de aplicabilidade.


Quem fiscalizaria a dor do condenado?

Quem daria ordem de liberdade?

Quem premiaria os bem-comportados?

Quem enterraria os mortos?


Foram-se embora os deuses com a sua autoridade e levaram também a razão do medo e a força da obediência.

Levaram consigo as trevas mais evidentes e o cheiro inebriante do Olimpo.

Saíram daqui mergulhados no próprio tédio, incapazes de saber o que fazer com tanta força.

Abandonaram os deuses os erros que criaram e esconderam a cara de vergonha.


Eu fiquei o erro que sou.

Cumpro a minha pena como sempre fiz.

Subo à montanha empurrando a esfera e lá em cima deixo-a rolar testando a constância da gravidade.


A minha condenação foi para sempre.

Não é preciso esperar que venha o carcereiro e me solte.

Nada é mais solitário que a eternidade.


Sísifo



publicado por prólogo às 00:17
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